Um Halloween em Portugal


          O engarrafamento ia longe pela Avenida Infante Dom Henrique e eu, dentro do ônibus, me afligia com o provável atraso. Marcara com Arthur sete horas em ponto na entrada da Starbucks do Rossio, mas, pelo andar da carruagem...
Já havíamos estado juntos semanas antes naquela estação de trens, finalzinho de tarde sossegada, pouca gente na rua e, ao contrário do que eu imaginara, não brindamos nosso encontro com a famosa ginjinha, mas sim com a cerveja da Taverna Imperial, bem ao lado do Hotel Avenida Palace. Alguns pedintes e um senhor bem vestido fingindo vender óculos, mas oferecendo drogas, encurtaram nossa permanência ali. Dispensamos o Elevador de Santa Justa e, subindo a pé o Bairro Alto, vi descer um grupo gargalhante de homens rosados, carecas, vestindo camisas pretas com detalhes em amarelo.
- Parecem alemães.
De fato eram. Na Bertrand, a maior e mais antiga rede de livrarias do país, o livreiro comentou da partida de futebol entre o Borussia Dortmund e o Sporting Lisboa, pelo Grupo F da Liga dos Campeões, mas eu estava mais interessado em examinar as capas diferentes das edições locais de “Apocalipse dos Trabalhadores” e “Homens Imprudentemente Poéticos” de Valter Hugo Mãe, minha mais nova paixão literária.
No Largo do Chiado, encontramos, por sorte, o imóvel poeta Fernando Pessoa completamente desacompanhado, disponível para quantas fotos quiséssemos, juntinho de uma deserta cafeteria A Brasileira. Mais acima, dezenas de pasteizinhos de nata eram dispostos sobre o balcão de uma estreita loja vazia. Aquela escassez de gente na rua seria por conta do futebol? A partida estaria acontecendo naquele momento? Do Miradouro de São Pedro de Alcântara, apreciamos todo o encantamento da cidade de Lisboa e, para mostrar que conhecia alguma coisa ali, levei meu amigo ao pitoresco Pavilhão Chinês, um espaço para chás e lanches dividido em cinco ambientes com sofás, mesas de sinuca e as vitrines de incontáveis objetos antigos, separados por temas (soldadinhos de chumbo, armamentos de guerra, miniaturas de aviões e carros, bonecas como a Betty Boop...), excentricidade de um colecionador, que torna o lugar fascinante. Mal ficamos ali. Seguimos a Rua Dom Pedro V, onde o bar A Cevicheria, ao contrário do anterior, transbordava, e seu polvo gigante, pendurado no teto, quase enlaçava aquela gente barulhenta com seus tentáculos. Da Praça do Príncipe Real, descemos pela Rua do Jasmim até o Bar TR3S, onde o atendente Alexandre prometeu fazer-nos uma caipirinha bem aos moldes brasileiros. Saiu-se bem.
Noite se encerrando, na descida da Rua do Alecrim para apanhar um táxi, avistei o grupo de torcedores alemães silenciosos, fúnebres ao redor de uma mesa de bar. Teriam perdido o jogo? Um taxista, pouco afeito ao esporte, ouviu alguém dizer que os portugueses bateram mole nos alemães. Uma barbada.
          Só descobri que a peleja futebolística não havia acontecido ainda, através das conversas que rolavam dentro do ônibus, naquele meu amuo pelo inevitável atraso para o segundo encontro. Engarrafamento monstro. Quase nada se deslocava. Na certa, era por conta do feriado de Todos os Santos. Tive a ideia tardia de descer e pegar o metrô mais próximo. Mas a Estação Santa Apolónia ficara para trás. Até que, por um milagre, o ônibus tomou impulso, cruzou a Praça do Comércio e parou no Cais Sodré. Desembarquei aflito, atravessei as duas pistas em carreira desabalada e entrei pelo metrô bufando. Na plataforma lotada, respirei fundo para me recompor. Uma mão tocou meu ombro. Era Arthur.
Feliz coincidência. Ele também atrasado, porém tranquilo, achou graça por me ver ofegante:
- Qual a razão desse seu sufoco?
- Eu que pergunto. O que está acontecendo por aqui?
- Cidade em festa.
O trem chegou à plataforma e ele completou animado:
- Vamos. Hoje tomaremos nossa ginjinha. A primeira será por minha conta.
Corri os olhos pelo vagão e logo me deparei com uma rapaziada de olhos fundos, roupas em farrapos, cicatrizes e sangue escorrendo dos braços e bocas. Eram zumbis querendo ser elenco de “Walking Dead”. Mais atrás, um Freddy Krueger de chamego com uma Noiva Cadáver. Foi então que a minha ficha caiu: Halloween.
Desembarcamos na Praça dos Restauradores para irmos direto à ginjinha. No Largo São Domingos, muita gente animada saboreando a tradicional bebida, que era adquirida através de uma portinha de espaço mínimo. Uma senhorinha recebia o dinheiro e um rapaz grandalhão ia enchendo ligeiro as garrafas de ginja através de uma torneira na parede, um pouco abaixo da cintura dele. Depois distribuía nos copos plásticos. Finalmente nosso brinde aconteceu e partimos para a segunda rodada.
- Precisamos registrar esse momento histórico. Vamos pedir pra alguém tirar nossa foto.
Fiz o pedido para duas garotas passantes, utilizando-me do ar galhofeiro que todo brasileiro insiste em assumir quando está lá fora. Elas estranharam minha abordagem. Recuaram. Arrependido, insisti, postando as duas mãos em súplica:
- Por favor... É só uma foto. Umazinha. Nada mais.
Ofereci meu celular. Elas se entreolharam. Por fim, sorriram. Uma delas cedeu.
Agradecemos a gentileza e as gajas tomaram rumo. Decidido a ficar mais contido nos gracejos para não ser mal interpretado, sugeri uma terceira rodada de ginja, mas Arthur recusou. Estava com fome. Caminhamos pela Rua das Portas de Santo Antão na busca por um bom restaurante. Tudo cheio. Comer por ali seria impossível. Uma garota fazia evoluções com tochas bem perto da fachada do Teatro Politeama, que anunciava o infantil “A Pequena Sereia” e “As árvores morrem de pé” de Alejandro Casona, com Eunice Muñoz e grande elenco.  
Foi na Padaria Portuguesa da Avenida Liberdade que resolvemos nosso impasse alimentar. Simpaticamente atendidos por duas mocinhas, uma lisboeta e uma brasileira, ganhamos de cortesia dois pedaços imensos de bolo de milho, para compensar uma provável demora dos sanduíches de hambúrguer e queijo.  Nem demoraram tanto assim.
No som ambiente, reconheci a voz da maior fadista de todos os tempos.
- É impressionante! Ela ainda continua viva na memória do povo – comentei.
Pela cidade, a gente vai encontrando Amalia Rodrigues em toda a parte: nos grafites das ruas, na decoração dos bares, no som das tascas de fado vadio - frequentadas, em grande parte, por jovens - nos museus, nas lojas de produtos só dela.
Uma hora depois, na subida da Rua do Carmo, apreciávamos um lindo e caro casaco da vitrine da Zara e o canto choroso de um homem próximo me fez pensar se aquele seria algum fado de Amalia.  Novamente na Livraria Bertrand da Rua Garret, vi publicações e retratos em sessão só dela. Mas também os destacados livros de Gonçalo M. Tavares e Mia Couto, um moçambicano muito festejado no Brasil. Vinícius de Moraes está lá com sua Obra Completa. De volta para a rua, atravessamos um pequeno túnel para um largo ajardinado, onde não havia lugar nem para se encostar. Farta clientela, falatório, som de talheres e copos abafando uma sumida música, garçons atônitos. Nos chapéus das mesas, o impresso: “Cocktail Bar Pizzeria”.  Demos meia volta. Daquele ponto em diante, eu me senti em pleno carnaval. Todo tipo de criatura curiosa passava por nós: Hellboy, Frankenstein, Malévolas, vampiros, lobisomens, príncipes, princesas, fadas, personagens de “Games of Thrones”, casais de bruxos com suas crianças fantasminhas, pequenos Chuckys ou projetinhos de múmias carregando aquelas aboboras iluminadas.  Os lisboetas vivem intensamente o halloween. Muita gente bonita e risonha, muitos turistas. Estes não estavam fantasiados. Atentos aos passantes, rapazes em roupas de marca vinham feito moscas oferecer drogas:
- Marijuana?
- Cocaine?
- Farinha boa?
Seguimos em frente repetindo o gesto de recusa. Na Praça Luis de Camões, uma garota sueca, bonita, de seus vinte e pouquinhos, com alguns graus a mais de animação, veio nos oferecer convites para uma festa regada a sexo e drogas. Foi bastante insistente e prometeu realizar um número de strip-tease só para nós dois. Achamos muita graça daquilo. Demos a desculpa de voltarmos ali mais tarde e caímos fora. Duas ruas acima, outra festa se anunciava, com uma turma mais madura se aglomerando diante de um portão estilo medieval. Puxamos conversa com um Mister M e sua partner Morgana que, em outros dias, levavam vida rotineira, filhos na escola, escritório de contabilidade em expansão precisando de mais empregados.
Continuamos nosso tour, ainda cruzando com mascarados, alguns me lembrando de bate-bolas cariocas. Novamente vi passar os torcedores do Borussia Dortmund com seus uniformes da cor de luto. Seguíamos animados, felizes. Arthur, numa demonstração de entusiasmo, executou passos de dança, saltou, fez uma pirueta. Até que, enfim, chegamos ao Miradouro Santa Catarina. Apesar da lotação, uma boa mesa vagou e pedimos cerveja ao jovem atendente. Ficamos, por um tempo, quietos, bebendo e apreciando o Rio Tejo com seus transatlânticos iluminados. De vez em quando, uma brisa trazia o cheiro dos baseados que a rapaziada fumava sem qualquer problema, porque ali, a polícia faz vista grossa. Bem perto de nós, pessoas mais idosas tomando seus drinques sob velas que se espalhavam pelo jardim da Associação dos Farmacêuticos.
Naquele momento, naquela cidade, eu experimentava sensação indescritível de segurança, de poder andar livre, de não ser importunado, de não correr riscos, de saber que não seria abordado por bandido com arma de fogo querendo meu celular.
Liberei minha tagarelice para contar das maravilhas que conheci desde lá da Serra da Estrela, subindo e descendo estradas na companhia do amigo Denilson. Da beleza dos palácios, mosteiros, igrejas. Das muralhas de Sintra, Óbidos e Guimarães (o atelier de Junia Melluns e Nelson). Dos canais de Aveiro. Do litoral de Cascais, de Figueira da Foz, de Nazaré e da onda gigante que não veio. Da acolhida dos queridos Mel e Alvaro, Alan e Adelino. Dos encontros com o primo Carlinhos e a namorada Diana, com o músico Chico Cabral e com a gaúcha Andrea Poetter na cidade do Porto. Por todo lugar que visitei, fui bem recebido pelos portugueses.
O tom da conversa mudou quando falamos do que nos aflige em relação ao Brasil, em especial, do que se tornou o Rio de Janeiro.
Arthur manifestou preocupação com a mãe e a irmã, moradoras da Vila da Penha:
- Essas notícias de arrastões, de balas perdidas... Meu sonho é trazê-las para Lisboa.
Ele estuda Relações Internacionais e está adorando viver como português. Saber de seus projetos me comoveu. Meu amigo é um rapaz bom, tranquilo, transmite sinceridade no olhar, fala com doçura, mesmo que gracejos ou inquietudes.
A hora ia avançando. Pedimos a conta. Eu catei moedinhas para dar de gorjeta ao jovem atendente. Este, ao ver aquilo, recusou de imediato:
- Aqui não aceitamos. Isto é coisa do Brasil.
Voltamos pelo mesmo trajeto da ida, com mais monstrengos pelo caminho até chegarmos ao Bar “O bom, o mau e o vilão”. Mas nossa última parada foi ao lado, a Pensão do Amor: lugar com ares de cabaré, vários ambientes, lojinha de produtos eróticos, biblioteca de mesma temática, uma tendinha para leitura de tarô, barra de polidance e uma pista de dança com hits anos 80 comandados por uma DJ.
Nosso abraço de despedida aconteceu diante do Mercado da Ribeira, onde um grupo de dança de salão acabava de se apresentar. Eu embarquei no voo para o Brasil na manhã do dia dois de novembro, dia de finados.
Bateu saudade do amigo querido. Tenho sempre a lembrança das nossas duas noitadas portuguesas e a imagem dele saltando, dando uma pirueta no meio da rua. Espero que nos vejamos em breve pessoalmente. Por enquanto, só pelo vídeo do computador ou celular, ele em aparições nas novelas de TV lusitanas.
Aliás, no dia dois de novembro, dia de finados, quem vestiu luto foi o torcedor português. O Sporting Lisboa perdeu de um a zero para o Borussia Dortmund.

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