A cozinheira impecável


          Em visita ao amigo Victor Hugo, eis que ele me convidou a almoçar, todo animado com a cozinheira nova.
- Ela me foi muito bem recomendada – sussurrou – Cuidadosa, limpa, cozinha maravilhosamente bem.
Depois, aumentando o volume da voz, fez o comunicado à dita cuja que agia lá nos fundos:
- Dona Edneia! Meu amigo Beto vai almoçar com a gente, tá?
De onde estávamos, aquele compartimento precioso da casa era bem visível. Pude ver uma senhora magra levantando a tampa de uma panela no fogão e jogando pedaços de algo dentro. Largou utensílios na bancada e veio até a sala, pano de prato em um dos ombros, fungando e esfregando o nariz.
- Seu Victor. Já desossei o frango, fiz o arroz e o feijão. Só me falta agora preparar a salada que é a minha especialidade. O senhor vai amar.
Dito isso, a modesta retornou à função. Posicionou-se diante da pia e, de costas para nós, iniciou a lavagem das hortaliças. Ia manuseando folhas de alface para ajeitá-las no interior de uma saladeira, picando pepino, cebola, destrinchando um agrião...  
Engrenamos um papo relacionado aos problemas de quem reside em prédio muito antigo, como as taxas condominiais, obras intermináveis de hidráulica, elevador pifando, moradores antissociais...
De repente, nossa conversa foi interrompida por uma sequência de ruídos estranhos vindos lá da cozinha. Era a mulher fungando. Fungava, fungava, fungava. Fungava cada vez mais alto. E suas mãos iam se dividindo em tocar tomates e esfregar com força o nariz. Pegava nas verduras, de novo a mão no nariz. E fungando, fungando, fungando.
Trocamos olhares. Meu amigo, preocupado, perguntou:
- Está tudo bem aí, Dona Edneia?
- Está sim, Seu Victor. Só estou um pouco resfriada, uma corisa chata, catarreira braba... Mas vai passar.
Os olhos dele se arregalaram. Levou a mão ao pescoço, expressão de desagrado, antes de aconselhar:
- É bom a senhora se cuidar.
Mal disse aquilo, a cozinheira descarregou uma sequência de espirros tão fortes, que sua cabeça se curvou várias vezes sobre a saladeira.
Victor agarrou com força meu braço, suas unhas cravando, seu rosto vermelho. 
Não aguentei. Cai na gargalhada.
- Vem comigo, disse.
Antes de sairmos porta afora, comunicou em voz alta:
- Aconteceu um imprevisto, Dona Edneia. Não vamos mais almoçar.
- Mas não vão comer nem a salada? – questionou a decepcionada, vindo lá de dentro limpando os dedos no avental.
Ele ameaçou um engulho e bateu a porta com força, quase na cara dela.
Seguimos direto para um restaurante no Largo do Curvelo.
Naquele dia mesmo, Dona Edneia foi dispensada das funções para poder se recuperar em casa do resfriado. Recebeu devidamente seus honorários e partiu levando toda a comida e a salada que havia preparado com esmero.

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