Da arte de começar tudo outra vez
Relendo sobre a morte do artista
plástico Jorge Selaron, inevitavelmente, me teletransporto para meu tempo de
morador de Santa Teresa. O chileno, cujo sobrenome era Morales, veio para cá em
90 e escolheu aquele bairro para morar e deixar sua obra impregnada, eternizada
ali, como a famosa escadaria de azulejos que nos leva até o convento. Fecho os
olhos e me vejo novamente lá, em uma das minhas quase diárias caminhadas
noturnas com minha cockerzinha preta. Vou subindo a Joaquim Murtinho, enquanto
aprecio as luzes da cidade lá embaixo, o relógio da Central, o Cristo Redentor.
Chego ao Largo do Curvelo e ultrapasso o bonde, ainda apinhado de gente e
conduzido pelo motorneiro Nelson.
Alguns
conhecidos me cumprimentam, minha vizinha Goretti vai apressada do outro lado
da rua com seu labrador Fred, mas Milla me reboca sem dar a mínima para ele.
Escuto os sons dos sobrados, os televisores quase todos sintonizados no mesmo
canal.
Penso
muitas coisas: um show cansativo meu no SESC, uma conversa com o cantor Jorge
Vercilo, compras necessárias para a casa, questões corriqueiras do prédio e a
venda meteórica de uma casinha-luminária que produzi e considerei a mais
horrível de todas. O mais incrível foi a compradora ter-me encomendado outra
exatamente igual.
Recordo
também a visita a um amigo, que me mostrou ansioso um acervo recém-adquirido, gravações
inéditas colhidas pelo músico Tião Neto (ex-integrante da banda de Sérgio
Mendes): poesias, cantos folclóricos, discursos de Kennedy, a voz de Louis
Armstrong e a primeira gravação de uma música brasileira, um maxixe de nome
Sans Souci. O registro é de 1888 em Portugal. Também a surpreendente Carmen
Miranda cantando em francês para a trilha sonora de um filme. Ter escutado
aquilo tudo, me fez lembrar meu pai. Não entendi a razão. Como vivo buscando
explicações, tento achar a lógica, mas meus devaneios se interrompem no Largo
dos Guimarães, ao esbarrar numa conhecida, que me revela, constrangida, que se
separara do marido e que mora num apartamentinho no Centro. Garante que agora
encontrará a felicidade. Logo nos despedimos. Vou pensando que meus pais
formavam um casal inseparável. Aí, uma luz se acendeu na minha mente. As
gravações antigas... Todos os domingos, durante nossas idas ao Governador Iate
Clube na Ilha, meu pai sintonizava o rádio do carro no “Projeto Minerva”, onde
ouvíamos os cantores do passado (Noel Rosa, Mario Reis, as irmãs Batista,
Francisco Alves...).
Passo
pelas lojinhas, bares, desenhos do Selaron e a Padaria das Famílias, com Milla
me puxando cada vez com mais força, na medida em que nos aproximamos da rampa
em zigue-zague que nos levará até a Rua Triunfo. Dali em diante, ela vai solta,
correndo e balançando as orelhas. O segurança da rua está lá, distraído com seu
radinho de pilhas dentro da cabine. O rádio ainda é uma força. Mesmo com a
televisão e o advento da internet, as pessoas o escutam.
Minha
primeira participação radiofônica aconteceu graças ao compositor Homero
Ferreira. Foi ele quem me levou ao programa do Adelson Alves na Rádio Globo,
depois de me surpreender cantarolando dentro da piscina lá do sítio.
De um casarão alto da Triunfo,
cachorros nervosos quebram o sossego da rua latindo para Milla, que vai de cá
para lá a fuçar as fendas dos paralelepípedos.
Olho
para o céu estrelado. Paira melancolia.
Lembro
o dia da morte do meu pai. Vê-lo deitado, imóvel, a certeza de que não estava
mais ali. Apesar da dor, não verti lágrima. Orei, pedi perdão pelo filho que
não fui, pelo homem que ele esperava que eu fosse e agradeci as oportunidades
que me deu na vida. Muitos anos antes, justamente quando meu pai viajava a São
Paulo para exames cardíacos, eu fazia minha estreia na Rádio Globo. Cheguei ao
estúdio, ainda sem saber o tom de “Começaria tudo outra vez” do Gonzaguinha e,
de posse do microfone, agradeci a oportunidade e dediquei a récita ao meu pai.
Imaginei que ele, em terras paulistanas, me ouvia. Minha mãe garante que
sintonizaram. Se eles ouviram ou não, não posso garantir. Preferi acreditar que
ele escutara cada palavra cantada por mim.
Ele
se operou logo depois. Outras cirurgias vieram. Entre uma e outra, os saraus lá
de casa com o Homero Ferreira ao violão, minha mãe cantando lindamente, meu pai
sacando do seu trompete. Eu assistindo. Raramente cantava.
Oito
dias após sua morte, assisti a uma sessão de cinema, cujo filme tratava da
difícil relação entre pai e filho. No final, eles se entendiam, se aceitavam,
se respeitavam. Não resisti e chorei muito. Nossa vida é passageira e pode ser tão
simples de ser vivida. Nós é que a complicamos, a tornamos insuportável. Mas a vida
tem seus recomeços e abre muitas possibilidades.
Milla dá sinais de querer ir embora.
Ponho-lhe a peiteira e vamos retornando ao Largo dos Guimarães. Ouço sons
vindos do pátio de um colégio: uma turma pratica capoeira. O bonde com o
motorneiro Nelson passa agora vazio. Desço a rua. O dedilhar de chorinho ao piano
quer ser mais audível que os televisores no Jornal Nacional.
Os
sons do bairro e as imagens na minha cabeça: Carmen Miranda gingando, a
escadaria do Selaron, Louis Armstrong e meu pai com seu trompete. Um trompete
que não deixou registro.
Vida
que segue, não é? Melhor que seja com um dia novo a cada dia enquanto der.
Milla
avista o portão do nosso prédio se aproximando e puxa mais forte.
“Calma,
princesinha! Pra que a pressa? Mas amanhã, a gente repete o passeio todo de novo.”
Comentários