Recordando Simone II



Diante da porta do apartamento, João meteu a chave no trinco e avisou que tudo estava uma grande desordem. A sensação que tive ao entrar ali não foi nada boa. Os discos, as gravuras emolduradas, caixas e mais caixas... Tudo pelo chão. As paredes com as marcas dos quadros e os pregos revelados. Tão diferente do cenário que eu conhecia tão bem
No quarto de Simone, ainda intacto, as portas do armário abertas a mostrar aquelas roupas ainda arrumadas do jeito dela, mas que, em breve, sairiam todas de uma só vez para uma instituição de caridade. Voltei os olhos para a sala, num desejo de que as coisas todas voltassem aos seus devidos lugares, recuperar aquele antigo refúgio onde nos deixávamos ficar por horas e horas tagarelando nossas bobagens, ao som de boa música, saboreando vinho barato. Também conversávamos coisas sérias, questionávamos nossas vidas, falávamos de amores, família e morte. Fizemos aquele manjado pacto do “Quem desencarnar primeiro, dará um jeito de avisar ao outro”.
Minhas idas ali sempre viravam festa. O ritual era o mesmo. Eu chegava pedindo água, tirava os sapatos e corria para a estante capturar o “Almanhaque” com as máximas do Barão de Itararé. Com ele, me jogava na rede e abria casualmente suas páginas para extrair a frase que representaria nossa noite.
“Adoro esse livro. Dá ele pra mim.”
“Calma. Um dia eu te dou”, respondia rindo.
Simone preferia as coisas simples. Estava feliz com um pequeno móvel rústico com espelho de três faces que descobrira num brechó. De um lado, um cesto indígena com duas flechas. No outro, um porta guarda-chuvas. Numa das paredes, o quadro que eu pintara, barquinho ancorado numa praia calma diante de um coqueiro, primeira tentativa de pintor despreparado. Na parede oposta, as três andorinhas de louça azuladas, dessas que decoram varandas de casas antigas, presente que demos a ela, eu e meu amigo Maurício, encontradas numa feirinha de Petrópolis. Entendemos que cada andorinha representava um de nós.
Escolhida a frase da noite, lá íamos nós para a rua.
Numa dessas saídas, noite fria em Ipanema, eu e Simone bebíamos vinho na varanda do Alberico's quando nosso sossego foi quebrado com a chegada de umas meninas aflitas que grudaram na nossa mesa, falavam gritando, se empurravam e esbarravam constantemente na minha cadeira. Quase derramei meu vinho. Direcionei um olhar zangado para elas, que se desculparam. A mais alta tinha um cartão desses que se compram em papelaria. Logo entendi o motivo de tanta aflição. Lá dentro do restaurante, um elenco estelar da TV Globo jantava em intervalo de gravação da novela das oito: Hugo Carvana, Malu Mader, Zezé Motta, Denis Carvalho, Marcos Paulo, Lutero Luis e Lauro Corona, este último, o foco principal delas.
Finalmente, os atores foram se levantando para retomar o trabalho que era ali perto, na portaria de um prédio da Vieira Souto. Na medida em que se aproximavam da porta, eram cercados pelas jovens, autografavam o cartão, tiravam fotos e seguiam para o set.
O tão desejado Lauro Corona não dava sinais de querer ir embora.
A líder das meninas veio pedir nosso auxílio. Queriam que levássemos o cartão até o ídolo, porque elas não tinham coragem de ir até lá.
Agarrei o cartão e fui direto até ele, que estava concentrado na leitura de páginas, certamente o roteiro. Pedi desculpas pelo incomodo e apresentei aquele pedaço de papel. Ele olhou-me desconfiado, ajeitou os óculos e fez um leve menear de cabeça para que eu deixasse sobre a mesa. Agradeci e voltei ao meu lugar. Pedi às meninas que tivessem paciência. Mas os minutos, para elas, viraram horas. Finalmente, ele se levantou e saiu como uma bala, desaparecendo para dentro do ônibus da emissora, estacionado diante do prédio das filmagens.
As meninas correram em busca da preciosidade e descobriram decepcionadas que o cartão ficara ignorado em meio aos guardanapos usados.
Simone indignou-se com aquilo.
"Nossa! O que custa dar um autógrafo?"
"Na certa, esqueceu. Vamos resolver isso", decidi, tomando o último gole da caneca.
Pagamos a conta e seguimos retos na direção do tal ônibus da Globo. Ali, filmavam uma cena onde a atriz Zezé Motta sofria discriminação racial, era barrada na portaria pelo zelador interpretado pelo Lutero Luiz. Novela Corpo a Corpo de Gilberto Braga.
Simone comandou a tropa de meninas como se fosse uma líder bandeirante.
Nisso, o Lauro saltou do ônibus ajeitando um casaco sobre os ombros e eu acenei com o cartão.
"Ei! Suas fãs querem que você..."
"Desculpe, querido, mas estou trabalhando. Com licença".
O tom foi ríspido. Meteu-se rapidamente para dentro do cercado do set.
Resolvi compensar o esforço daquelas meninas decepcionadas.
"Olha... Tudo bem... Não pintou o autógrafo dele, mas eu posso autografar para vocês."
Simone segurou o riso. Recebi olhares de surpresa e de um certo desprezo.
Uma garotinha, a mais novinha do grupo, disse insolente:
“Você? Mas você... Você não é ninguém.”
“Como é? Ninguém?”
Fiquei indignado.
"Você não é famoso."
"Não sou famoso agora. Mas na próxima novela, eu e ela (Simone) seremos o par romântico da estória. Não é mesmo, Viúva Porcina?”
Simone confirmou o meu blefe com seu jeito nervoso de mover a cabeça.
As meninas se entreolharam e, na dúvida, colheram nossas assinaturas e tiraram fotos conosco.
Rimos muito depois da situação.

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