Coisas do Brasil


Dia seis de outubro de dois mil. Era uma sexta-feira. Aquela foi uma das noites mais curiosas que já vivi nessa estrada de cantorias por aqui e acolá.
Chovia a cântaros e eu me encontrava todo arrumado, chapéu na cabeça, dentro do ônibus 409 parado num engarrafamento no Jardim Botânico, atrasado para ir cantar na varanda do Clube Militar da Lagoa. Atrasei-me muito por conta do caldo verde que oferecera horas antes a um casal de amigos e pelas crateras que tinha feito na barba, ao tentar apará-la, com a habilidade e a delicadeza de um lenhador. Resultado: acabei tirando tudo e deixando um cavanhaque ridículo que me dava um ar meio cafajeste.
Um cara magrinho de óculos sentou ao meu lado no ônibus, deu uma conferida no meu visual e não resistiu:
“Desculpa perguntar... Sou fotógrafo e observo as pessoas. Você é cantor?”
"Sim".
“E é do nordeste, não é?”
“Não sou não. Mas adoro o povo nordestino.”
“Mas você assim de chapéu... Achei que fosse cantor de forró.”
“Olha... Eu adoro um forrozinho. Hoje mesmo, ouvi muito Luiz Gonzaga. Quando dá, canto alguma coisa do velho Lula.”
“Canta Morango do Nordeste?”
“Não. Não canto não.”
“Puxa. Eu me enganei mesmo. Sou de Pernambuco. Sou fotógrafo e também percussionista de um grupo de regional de lá. Estamos fazendo um trabalho sobre Luis Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Você gosta do Jackson?"
"Adoro. E também do João do Vale. O que você toca?"
"Zabumba. Meu irmão, acordeão. Meu primo toca viola."
Entregou-me um cartão para contato e saltou junto comigo. Ia assistir a um show sobre Nara Leão no Mistura Fina, que fica pertinho do Clube Militar.

Cheguei com meia hora de atraso, e já tinha muita gente esperando, apesar da chuva. Comecei logo a cantar, acompanhado pelo violão do Homero Ferreira e pelos irmãos Santana, Augusto e Aílton. Percussão e cavaquinho, respectivamente.
O público era composto, na sua maioria, por pessoas idosas. Um ou outro jovem assistindo, mas a predominância era de militares com suas esposas. Havia também uma mesa com um grupo de senhoras finamente vestidas. Provavelmente, viúvas.
Cantei Ary, Herivelto, Orestes... Quando anunciei o primeiro intervalo, uma delas veio e apertou minhas bochechas.
“Que Jesus te ilumine! Você é um amor! Você é mineiro, meu filho?"
"Não. Sou carioca", respondi.
"Ora... E esse seu jeitinho calminho? Eu jurava que era de Minas, uai!”
Tascou-me um beijo e me arrastou até a mesa delas.
Retomamos a cantoria, desta vez, cantando bossa nova. Logo a seguir, uns choros. Outra senhora, muito magra e ornamentada qual uma árvore de Natal passou um bom tempo me olhando com seu ar austero. Talvez não estivesse gostando na minha apresentação. No momento em que Ailton iniciou um solo de cavaquinho, ela se levantou e veio me abordar:
"Você é gaúcho?"
"Não. Sou carioca."
"Se não é gaúcho? Por que esse chapéu? Não gosto desse chapéu."
"Faz parte do show, senhora."
"Não, não. Isso esconde seu rosto lindo. Por isso que a televisão não descobriu você."
Fiquei desconsertado.
“Pois é. Ainda não aconteceu.”
"Não pode ficar assim", insistiu. "Um rapaz bonitão, talentoso tem que ir pra TV. Tira esse treco da cabeça, vai.”
E sem cerimônia, arrancou o chapéu da minha cabeça, deixando a mostra meus cabelos desgrenhados.
E continuou:
“Agora sim. Ficou outra coisa. Chapéu é pra gente atrasada, gente velha."
Homero sinalizou para que eu retornasse.
Eu a cumprimentei e recuperei o chapéu. Ela me entregou um guardanapo com algo escrito.
"Vai lá, filho. Mas canta essa música pra mim. É de um conterrâneo do meu pai."
Abri o bilhete para ler: “Matriz e filial”, do Lupicínio Rodrigues.
Atendi ao pedido dela. E cantei mais um set de uma hora mais ou menos. No segundo intervalo, sentei-me na mesa de uma amiga minha, a Bebeth.
“Posso falar com esse casalzinho lindo?”
Bebeth corou.
“Pois não, senhor.”
"Vocês são casadinhos, não é?”
“Sim”, menti.
Minha amiga segurou o riso.
“Como é o nome da esposinha linda?”
“Bebeth.”
“Então devo cumprimentá-la pelo talentoso maridão.”
E beijou a mão dela.
“Vocês tem jeito de não serem daqui. São de São Paulo?”
“Não senhor. Somos cariocas mesmo.”
“Ora... Achei que fossem paulistas. Sou de Piracicaba. Amanhã volto pra lá, pro casamento da minha neta. Como eu gostaria de levar um show desses pra ela...”
Apertou minha mão e, já se afastando, deu uma olhadinha pra trás e perguntou:
“É Bebeth mesmo o seu nome, filhinha?”
Eu respondi antes dela:
"É nome artístico. Uma espécie de chacrete. Sou Beto e ela é a minha "bebete".
Minha amiga começou a rir escancaradamente. Uma senhora baixinha que ficara de longe com os olhos pregados na nossa mesa, veio fazer sua participação naquele elenco de gente doida.
"Vi você rindo, minha filha. Não tenha vergonha de apoiar seu marido.”
“Mas... Eu apoio ele sim. Apoio e muito.”
"Posso lhe dar um conselho, minha doçura?”
“Claro.”
“Não fique exibindo as pernas dessa maneira. Não fica bem para uma mulher casada."
E se retirou. Não entendemos nada.
No último set, mandamos uns sambas bem animados e uns forrozinhos. Homero adorava me ouvir cantar “Enquanto engomo a calça” do Ednardo. Os casais se formaram na pista e vi um rapazinho encostar-se à parede para me assistir bem de perto.
Foi e voltou umas quatro vezes. Parecia ansioso.
Até que fez um sinal, querendo falar comigo. Eu me aproximei e o jovem sussurrou pedindo para que eu cantasse “Parabéns” para ele. Estava completando dezessete anos naquele dia. Atendi ao seu pedido. Todos bateram palmas.
Depois, o pai dele veio falar comigo agradecido. Devia ter seus cinqüenta e poucos anos, com um cachimbo na boca.Delegado de polícia. O filho, estudante de pré-vestibular para Direito. Os dois eram de Curitiba.
Antecipei qualquer indagação.
“Olha. Pode não parecer, mas sou do Rio de Janeiro, ta? Sou carioca da gema.”
Os dois riram e, após elogios, me deixaram seus telefones e e-mails para, quem sabe um dia, eu ir até a casa deles no Paraná ou até uma fazenda em Goiânia.
Cantei a saideira e logo uma morena de longos cabelos e ar debochado veio me cumprimentar e disse ter uma queixa:
"Já vi que você não é baiano."
“Não entendi. Por que?”
"Adorei tudo, sua voz, as músicas... Mas, não cantou nada da minha terra, a Bahia."
Puxa... Como é difícil agradar todo mundo.
Voltei para um bis e mandei um pot-pourri de Dorival Caymmi.
A garota mostrou-se satisfeita e mandou um beijo de longe.
Finalmente encerrada minha apresentação, despedi-me de todos e sai. Lá fora, na rua, a chuva diminuíra bastante. Mas antes que eu me afastasse da portaria, um senhor bem branco de boné na cabeça veio correndo atrás de mim, acenando com um papel.
Era diretor de um clube em Niterói e queria que eu me apresentasse lá.
Apertou minha mão com força e disse:
“Olha... Estou comovido. Fiquei ouvindo você cantar e me deu uma saudade danada de tantas coisas, de algumas pessoas, da minha terra. Sou de Uberlândia.”
Fiquei esperando alguma pergunta maluca. Ele continuou:
“Sua voz me inspirou a escrever este poema. Queria dá-lo a você. Não repare, hem?”
Abriu uma folha de papel e leu em voz alta aquela inusitada composição:

A chuva cai fria lá fora
E eu aqui nesta grande varanda
Lembrando você, minha amada.
Que saudade no meu coração
Sinto o beijo, uma dor tão intensa
Um calor, a saudade é imensa
E você, que exala, perfuma
Esse cheiro de flor, tão ingênuo
É o pulsar deste meu coração
Traz a grande emoção, um querer
Este amor que em mim quer viver
É você, meu amor, é o meu ser.
Assim que terminou, dobrou e me entregou o papel.
“Faça o que bem entender com isso, rapaz. Quem sabe, uma música?”
Apertou mais uma vez a minha mão e retornou veloz para dentro do clube.
Dentro do ônibus 409, lembrei-me do companheiro da ida, o fotógrafo pernambucano. Se estivesse ali ao meu lado, teria dito a ele:
“Hoje, meu amigo, cantei para o Brasil todo.”

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