Recordando Simone III


Há algum tempo, nos falávamos apenas por telefone. Simone andava indisposta, dizia passar muito tempo deitada, mas não queria entrar em detalhes. Apenas garantia que, em breve, estaria em forma novamente.
"Sou uma fortaleza, se esqueceu?"
Avisei que iria até lá para uma visita. Há muito tempo não promovíamos mais aqueles nossos alegres encontros, com direito a vinho, pizza, música e as frases engraçadas colhidas do “Almanhaque” de Aparício Torelli, o Barão de Itararé.
Ela recusou. Queria ficar um tempo só. Tive que respeitar sua vontade.
E assim foi. Eu ligava umas três vezes na semana para contar sobre o meu dia-a-dia, dizer coisas engraçadas, falar detalhes de um show que fiz em Botafogo, lamentando a ausência daquela que se auto-intitulava líder do meu fã clube.
Ela, num claro desânimo, não correspondia às brincadeiras, como de costume.
Por ocasião do falecimento do meu pai, me pediu milhões de desculpas por não ter comparecido ao velório, porque estava com muitas dores. Mas foi o máximo que quis revelar. Não falava de problemas.
Três exatos meses após esse meu drama familiar, veio o fatídico dia.
Uma estranha intuição.
Cheguei tarde em casa e corri direto para o telefone. Senti necessidade de ligar para ela. Já eram quase onze da noite. Ninguém atendeu. Esperei um tempo para tornar a ligar. Nada. Outra tentativa. Ninguém atendia. Uma angústia se apossou de mim. Deitei-me na rede da sala e fiquei insone a olhar para a janela. E notei, no meio das copas de duas mangueiras uma luz lá no céu, uma luz muito intensa.
Era uma estrela.
Imediatamente um filme começou a passar, as lembranças de tudo, desde o primeiro dia em que eu a conheci: nossos passeios, o piquenique em Grumari, as brincadeiras, a experiência com as malfadadas telhas, os biscoitinhos amanteigados na feira de Ipanema, nosso dueto no Clube Militar, onde cantamos “Este teu olhar” com “Promessas fiz”... E alguns beijos.
Tudo, estranhamente passou pela minha lembrança, como se fosse um aviso. Liguei o computador e digitei logo uma letra que me veio inteira na cabeça. Uma letra de música.
E voltei para a rede. Antes de amanhecer, adormeci por uma hora e meia.
Passei um dia horrível. Como um zumbi por conta da noite não dormida, visitei minha mãe e fiz uns pagamentos em banco. O complicado foi o retorno pra casa. Levei horas num trânsito infernal. Tudo paralisado no Centro. Manifestações contra o governo FHC e a crise de energia. Mas minhas forças minguaram de vez ao receber o telefonema de meu amigo Flavio. Não tinha boa notícia para me dar. E inexplicavelmente, num ímpeto, eu respondi: “Eu já sei.”
Para mim, foi assustador aquilo. Tinha dito sem pensar.
E ele, do outro lado da linha, confirmou que Simone se internara secretamente no Miguel Couto, preferindo poupar os amigos do seu sofrimento. Talvez até acreditasse que superaria tudo. Mas uma embolia pulmonar no início da madrugada acabou com tudo.
Ela era assim. Não tocava em assuntos que falassem de tristeza e morte. Só compartilhava o riso e a alegria. E desse jeito, minha velha parceira de aventuras foi-se embora.
Minha amiga, irmã, amada, chefe da minha torcida, cúmplice das minhas fantasias. Se ao menos ela tivesse permitido que eu lhe desse carinho em seu momento de dor...
Dias após a missa de sétimo dia, estava eu ali naquele apartamento todo desmontado. João, filho dela, remexendo as caixas, retirando as roupas dos cabides. Mostrou-me um anúncio que colocara no jornal alugando o imóvel. Daria uma boa renda. Estava morando com a avó ali perto. Ele insistiu para que eu ficasse com alguma coisa de lembrança, algum móvel, quadros, os discos... O que eu quisesse. Afinal, eu tinha sido o grande amigo de sua mãe.
Recusei aquelas ofertas. Mas, logo me lembrei das três andorinhas azuladas de porcelana que eu e Maurício havíamos presenteado a ela no dia do seu aniversário. Seria a melhor recordação material que levaria dela.
Ele me entregou o embrulho que fizera. Não resisti e abri.
Havia duas apenas.
“Duas? Mas eram três”.
João estranhou.
“Três? Tem certeza?”
Ficamos um tempo em silêncio olhando aquelas duas andorinhas. As lágrimas do João escorreram. Logo as enxugou com a mão e ofereceu:
“Os livros. Fica com os livros. Nem tive tempo de tirar da estante.”
Olhei a biblioteca desanimado e notei dois dicionários Aurélio iguais.
"Fico então com um dicionário."
O escolhido estava acomodado na horizontal na penúltima prateleira do alto. Estiquei o braço e o puxei. Mas havia um outro livro por cima dele que escorregou e bateu forte na minha cabeça, indo parar fechadinho no chão.
Era o “Almanhaque” do Barão de Itararé.

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