O segredo do casarão

Um final de semana qualquer, eu com os amigos Flavio, Luciano e Luiz Feijão planejamos um tour de bicicletas por caminhos ainda não desbravados lá pelas imediações dos nossos sítios. Eramos novinhos, já entrando na adolescência, e o Jardim Paraíso ainda não estava tão habitado como hoje.
Saímos cedo naquele sábado de sol com calor absurdo sem a preocupação de levarmos água. Eu com meu chapéu de palha, óculos Ray-ban, bermuda branca, camisa amarelo-ovo e um toalhão azul que eu insistia em usar sempre atravessado no pescoço com suas pontas caindo dos ombros para trás como se fosse capa de super-herói. Eu não me desvencilhava daquele uniforme, nem havia explicação para aquela toalha. Uma mania minha vinda dos tempos da natação no Tijuca Tênis Clube. Eu me sentia, de certa forma, um herói de quadrinhos quando montava na bicicleta e saía em disparada, a toalha tremulando. Deixamos o Clube 34, seguimos pelo asfalto esburacado da Estrada do Madureira e circundamos um grande loteamento árido. Poucas casas se formando. Eu ia à frente, pedalando rápido, ansioso com a aventura. No final do loteamento, a estrada já em curva, parei diante de um portão colonial alto fechado. Através dele, um caminho de pedras ladeado por palmeiras imperiais em linha reta até um casarão magnífico, desses de fazenda.
- Queria entrar aí pra conhecer – falei para Luciano que chegou logo depois.
- Tá doido? Ouvi dizer que o homem que mora aí é uma fera, acha que todo mundo é invasor. Dá até tiro de espingarda.
Flavio, seguido de Luiz Feijão, não quis parar. Passou gritando:
- Vamos nessa, minha gente! Vamos, vamos, vamos!
Seguimos nossa meta. A partir dali, o asfalto acabava. Um poeirão só. Havia a promessa política que se perpetuava de se asfaltar tudo, trazendo o crescimento para aquela região. Era o que desejávamos.
Enquanto isso, os carros que passavam iam jogando terra na gente. Em alguns momentos, um de nós atolava em areia fofa. Mas seguimos bravios.
Depois nos enfiamos por uma estradinha de terra batida que cruzava pastos e córregos. O caminho foi se tornando ínfimo. Eu, todo feliz com as descobertas dos sitiozinhos ou alguma paisagem interessante, cumprimentava os que passavam. O Pico Marapicu se distanciando muito pouco da gente, mas se mostrando por um ângulo até então desconhecido. Luiz Feijão manifestou sede. Sua camisa branca estava ensopada. Tratou de arrancá-la. Luciano já havia tirado a sua azul fazia tempo. Naquela época, ele não tinha ainda o físico avantajado da malhação pesada, mas já gostava de exibir seu corpo. Só eu e Flavio, com sua camisa vermelha por razões políticas, não perdíamos a elegância. Ainda mais eu, que não desmanchava o uniforme.
Paramos diante de um casebre com duas crianças brincando no chão, galinhas ao redor, um cachorro magrinho que ameaçou se enfezar. Sossegou com o comando de uma mulher bem humilde, a dona da casa. Pedimos água. Ela foi e voltou com dois copos e uma garrafa com um líquido amarelo quase marrom. Eu e Flavio recusamos de pronto. Luciano e Luiz Feijão beberam fartamente. Agradecemos e decidimos voltar dali. Metade do grupo saciara a sede. A outra metade não. Disparamos na esperança de encontrarmos alguma birosca na estrada principal. Eu assumira novamente a liderança e pedalava com vontade para deixar logo aquela estradinha. De repente, eu, todo afoito, após passar por um dos córregos, não percebi a cobra enorme que cruzava bem na minha frente. Só percebi quando já estava em cima. Eu me desesperei, sem saber se freava ou não. Levantei as pernas como um contorcionista de circo e entreguei para Deus. Minha bicicleta passou rasteira pela cabeça dela, que recuou e ameaçou o bote. Foi um susto e tanto. Por um triz. Prossegui desgovernado mais alguns metros buscando o controle do guidão. Não me esborrachei como seria o inevitável. Parei e gritei para meus amigos:
- Cobra! Tem uma cobra aí!
Os três pararam imediatamente. O bicho se atravessara no caminho. O único jeito foi jogarmos pedras. Eu de um lado, eles do outro. Finalmente ela se mexeu e se enfiou por dentro da relva. Alcançamos a estrada esquecidos da sede com Flavio troçando:
- Uma cobrinha de nada...
E mais poeirão.
Quando tocamos o asfalto e a curva do loteamento, alertei a novidade aos meus amigos, parando outra vez diante daquele portão colonial. Estava aberto, escancarado.
- Vamos lá dentro? Quero conhecer esse casarão.
- Se entrarmos aí, vamos ser atacados. Deve ter cachorro – temeu Luiz.
- Tem nada – insisti – Se tiver, está preso com esse portão aberto.
Sem mais dizer, embiquei a bicicleta para dentro e me meti pelo caminho de pedras, olhando para cima, para a copa das palmeiras imperiais, ignorando o chamado dos meus amigos. Ficaram pouco tempo indecisos lá fora. Acabaram topando aquela nova aventura.   Chegamos pertinho da casa. Silêncio total. Bati palmas. Nenhuma resposta. Tornei a chamar. Nada.
- Vamos embora daqui – insistiu o Luiz – O dono é furioso. Vai atirar na gente.
- Calma. Vou chamar mais uma vez.
E gritei o tradicional “Oh de casa!”. Mais palmas.
Sem resposta.
Desisti. Demos a volta. Quase no portão, ouvimos uma voz grave nas nossas costas:
- Pois não? O que querem?
Vimos um homem de bermuda e calça branca, pele bem bronzeada, cabelos grisalhos, beirando setenta anos que nos olhava carrancudo. Mas não estava com cachorro algum, nem qualquer arma de fogo.
- Viemos pedir um pouco d’água, senhor. É possível?
- Claro. Venham.
Sorri para meus amigos e aceitei. Largamos nossas bicicletas num canto do jardim e fomos levados até uma construção menor situada fora da casa principal, na parte traseira, que era uma cozinha maravilhosa, com tacho e inúmeras panelas penduradas, todas de cobre. O homem apertou nossas mãos com simpatia e disse chamar-se Mario. Ele possuía um par de olhos azuis impressionantes, mas suspeitei que fossem lentes.
Chamou a empregada, uma negra gorducha com ar de desconfiada.
- Maria. Sirva água para meus amigos aqui.
Ela nos trouxe uma garrafa de água realmente límpida.
Eu e Flavio debochamos do Luciano e Luiz Feijão por terem bebido daquela água barrenta meia hora antes. Nosso anfitrião quis saber mais do nosso passeio. Contamos do que vimos e do susto com a cobra. Perto, a churrasqueira, uma mesa de madeira maciça e magnífica parede feita com garrafas coloridas. Uma beleza aquilo. Nós nos apresentamos como vizinhos, falamos dos nossos sítios e ele nos levou até um beiral para nos mostrar os limites da sua propriedade com o grande loteamento árido.
- Aqui já foi uma grande fazenda no tempo do império. Mas depois que mamãe morreu, meu pai se desencantou, foi vendendo as terras em volta. Agora só temos essa casa. Tudo por aqui ficou decadente.
- Dizem que vão asfaltar a estrada toda. Aí, tudo vai melhorar.
- Assim espero. De qualquer maneira, pretendo manter esta casa só enquanto meu pai viver. Depois disso...
- Seu pai ainda é vivo?
- Sim. Está muito doentinho. Noventa e um anos.
Ao dizer isso, a empregada Maria veio chamá-lo:
- Seu Mario. Seu pai está impossível.  Acho bom o senhor ir lá.
- Venham comigo, meninos. Venham ver minha casa.
Luciano relutou um pouco. Vestiu a camisa e foi. Entramos por uma porta ampla de vidro que dava para um salão. Móveis antigos, quadros e mais quadros, muitos com temática equestre. Flavio se aproximou de um deles, uma pintura a bico de pena de um cavalo de corridas belíssimo e negro. Leu a legenda:
- “Filho da Puta”. Que nome curioso.
- É verdade – comentou o dono da casa – Nome estranho, mas foi um cavalo famoso, foi um campeão.
Havia também uma cristaleira com peças interessantes, sofás de forro gasto, Uma cadeira de vime branca de encosto largo com muitas revistas e jornais empilhados. Copos sobre uma mesinha. Muita desordem. Mas o que mais me chamou a atenção foi um cabideiro antigo apinhado de chapéus de todos os tipos. Fiquei fascinado com um, que era aquele típico de safáris. Havia outros exagerados, de cores berrantes e algumas plumas, adereços de vedete de teatro de revistas. Mas quem usaria aquilo?
- Esse aqui é aquele do Jim das Selvas.
Mario retirou-o do cabideiro e me fez substituir por segundos meu chapeuzinho de palha. Indicou-me um espelho. Adorei me ver com ele.
- Puxa vida. Adorei. É magnífico.
- Sim. Comprei durante uma viagem que fiz à África.
Demorei a devolver o chapéu ao seu lugar. Bem na nossa frente, uma varanda com pilastras em arcos, o sol batendo na metade dela e um senhor muito magro, se tremendo todo numa cadeira de rodas. Era o pai do nosso anfitrião. Ao escutar nossas vozes, perguntou de lá de onde estava:
- Quem está aí? Com quem você está falando?
- Com uns meninos, papai. São uns vizinhos nossos.
- Você já está de putaria, não é, seu viado? – rebateu o velhote.
Ficamos pasmos com o que acabávamos de ouvir. Mario avermelhou o rosto e tentou se desculpar pelo palavreado dito daquele jeito.
- Não reparem. Papai está senil.
Ficamos ali tentando segurar o riso. Ele foi até o ancião e, assumindo uma postura efeminada, mãos nas cadeiras, a voz se alterando para o agudo, ralhou:
- Ai, ai, ai, papai. Maria disse que o senhor não quer comer sua papinha. Que feio. Vamos fazer aviãozinho. Maria! Maria! Traz a papinha!
A empregada veio com a tigela. Eu e meus amigos paralisados diante daquilo, vendo-o evoluir exagerados movimentos de aviãozinho com a colher até adentrar pela boca do velho. Este rejeitou um pouco, engoliu e disse com o queixo a tremelicar em seguida:
- Você é um fresco, não é, filho? Você é um viado filho da puta, não é filho? Você gosta de tomar no...
- Ai, ai, ai, papai...
Interrompi aquela conversa amorosa para avisar que partíamos.
- Ora... Já vão? Mas vocês nem conheceram os quartos.
- Fica para uma próxima vez.
- Que pena. Voltem outra hora mais tarde, quando papai já estará dormindo.
Nós nos despedimos e saímos de lá rindo a valer. Vivemos tanto tempo acreditando na fera do casarão que expulsava todos os invasores debaixo de muita bala.

Muitos anos se passaram depois disso. As lembranças daquele chapéu de safári que cheguei a experimentar e do quadro do cavalo “Filho da Puta” ainda estão vivas na minha memória. Quanto aos moradores do casarão, ninguém sabe destino. Tudo ao redor se modificou. A estrada completamente asfaltada, mas ainda com pontos precários, não trouxe o progresso, mas sim, muita gente. O loteamento cresceu, cresceu, cresceu de forma absurda e desordenada. Virou uma grande comunidade que invadiu o casarão e todo o resto. A pobreza predomina por lá. Hoje em dia, ninguém ali imagina que aquilo já foi uma próspera fazenda dos tempos do Império.

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