O final da história

Num tempo longínquo, eu me recordo de uma noite no Instituto Guanabara na Tijuca. Auditório lotado para mais uma sessão. O filme: “Doramundo” (João Batista de Andrade) com Rolando Boldrin, Irene Ravache, Antonio Fagundes, Rodrigo Santiago, Armando Bogus, Denise Del Vecchio, Olnei Cazarré...
A trama se passa em 1939, numa localidade serrana paulista chamada Cordilheira, lugar de reparos de trens. Seus habitantes, gente simples, vivendo em modestas casinhas de madeira, todos muito amigos como uma grande família. Porém, uma série de assassinatos vai acontecendo, sempre em noites de grossa serração e sempre do mesmo jeito: golpes na cabeça por uma barra de ferro ou chave de rosca e, em seguida, um vagão se soltando e esmigalhando o corpo. As vítimas com as mesmas características: funcionários da rede ferroviária vindos da capital, rapazes, solteiros, todos instalados num alojamento. A companhia, temendo uma repercussão jornalística, chama o chefe de polícia Dr. Guizot (Armando Bogus) para o caso. Em meio às investigações, o romance secreto de Raimundo (Fagundes) com Dora (Irene Ravache), mulher casada com Pereira (Boldrin).
Eu já havia visto o filme umas duas vezes. Estava ali de curioso para ver a reação do público. Porém, quando faltavam uns vinte e poucos minutos para a película acabar, o projetor enguiçou. Cheiro de queimado. Possivelmente a lâmpada do aparelho. Acenderam as luzes do auditório. Plateia inconformada. Frustração. Os organizadores pediram calma, paciência, prometendo resolver tudo. O filme seria exibido de qualquer maneira até o fim. Naquela espera, iniciei uma conversa com um casalzinho simpático e recordamos nossas primeiras idas ao cinema. Eu contei a eles da noite em que, fascinado, fui pela primeira vez ao cinema. Mas não um cinema qualquer. Era um drive-in que existia na Lagoa. Eu, minha irmã e meus pais dentro do carro, caixa de som engatada na porta. Nós, os pequenos, nos bancos da frente, maravilhados diante daquela tela, cada um com seu saco imenso de batatas fritas. Minha mãe preocupada para não sujarmos os assentos e a roupa. O filme, na verdade, era um desenho: “A Espada era a lei” (Estúdios Disney). Foi assim que iniciei minha paixão pelo sétima arte, paixão de todos. Quer dizer... Quase todos. Minha mãe diz que não gosta de cinema. Mesmo assim, ela nos levou algumas vezes ao Cine Bruni que existia perto lá de casa, dentro de uma galeria entre a Rua Major Ávila e a Avenida Maracanã (na altura da Praça Varnhagen). Assisti ali ao “Meu Pé de Laranja Lima” (Aurélio Teixeira) e, tempos depois, a um festival Frank Tashlin, dentre eles, “A Espiã de Calcinhas de Renda” com Doris Day e “O Bagunceiro Arrumadinho” com Jerry Lewis.
A Tijuca era um bairro coalhado de cinemas que se lotavam. Encarei muitas filas para ver “ET, o extraterrestre” (Steven Spielberg) no Cine Carioca, a saga “Guerra nas Estrelas” (George Lucas) nos cines Eskye e Tijuca Palace. Havia também o Cine Comodoro, bem considerado pelos filmes que exibia: “Bye Bye Brasil” (Cacá Diegues), “Os Embalos de Sábado à Noite” (John Badham) que vi sentado no chão, “Barry Lyndon” (Stanley Kubrick) e “Somewhere in time” (Jeannot Szwarc).
O Cinema III era bem esquisito porque não havia cadeiras. Eram bancos estofados inteiriços como arquibancadas, só que com encosto. Aquilo propiciava certas situações, onde casaizinhos se deitavam para produzirem seus próprios longas. Lembro-me de ter visto ali “Laranja Mecânica” (Stanley Kubrick).
Fora do circuito tijucano, frequentava o Cine Veneza com seus filmes de qualidade. Lá eu assisti “Hair” (Milos Forman) e “Les Nuits Fauves” (Cyril Collard), o último antes de se fecharem suas portas. No Paissandu do Flamengo, filmes de Bergman e Godard. Cito aqui os conhecidos do público, porque vi muita coisa, ainda mais depois que surgiu o Cine Estação Botafogo com os alternativos.
Prestes a entrar para a faculdade, conheci a professora Jurema Seckler. Ela lecionava História da Arte e trabalhava na Casa de Ruy Barbosa. Ficamos muito amigos. Nessa época, eu era presidente de um grêmio num clube e, graças a ela, organizei uma projeção de fotos em slides de ruas e localidades do Rio no final do Século XIX. Foi um momento bem divertido, porque desafiávamos a plateia a desvendar cada imagem. Sabendo da minha paixão pelo cinema, ela me surpreendeu no fim daquela noite com um presente: o disco do “Summer of 42” (Robert Mulligan). E ficou bem desapontada ao saber que eu não tinha visto até então aquele filme. Alguém conhece a história?
Meu professor de Literatura, o Ivan Cavalcanti Proença foi uma referência, uma influência forte. Com ele, assisti espetáculos da companhia de teatro do Luiz Mendonça, vi shows de repentistas em feiras de folclore, descobri Câmara Cascudo, conheci o cordelista Azulão e participei de alguns festivais de cinema no MAM organizados por ele. Voltava pilhado para casa após cada sessão, doido para contar o que havia visto e sentido. Quando sabia que meu ouvinte não veria mesmo o filme, contava em detalhes e procurando inventar algum clímax para prender a atenção. Adoro contar casos. Muitas vezes, de brincadeira, interrompia a narrativa, dizendo que estava cansado, para deixarmos para o dia seguinte. Fazia aquilo só pelo prazer da implicância. Ou então, inventava um final insólito para provocar o descontentamento. Claro que depois eu fazia o devido reparo. Algumas vezes, meu final inventado ficou melhor que o original. Nossa imaginação pode melhorar muito as coisas, não é?
Não faz muito tempo, caminhando pelo bairro de Santa Teresa, resolvi entrar no Cine Santa. O filme era “De Pernas pro Ar” (Roberto Santucci). Todos sentados esperando. Aí, a bilheteira surgiu para dizer que estava muito envergonhada com o que tinha a dizer: um problema na lente do projetor atrasaria a sessão em SETE MINUTOS. Aquilo provocou o riso na plateia. Ela saiu. Logo voltou trazendo uma cesta enorme de pães caseiros e disse que, para compensar o atraso, sortearia aqueles pacotes, presentes de uma amiga cozinheira. Eu me levantei e ajudei no sorteio. Não ganhei unzinho sequer. A maioria dos ganhadores que se levantava para receber seu brinde e se motivava a dizer alguma gracinha para ela, que era realmente uma figura. E vinham aplausos e mais aplausos. Situação hilária, mais engraçada que o próprio filme em cartaz. O projetor foi consertado e tudo transcorreu até o fim na alegria.
Situação quase parecida com aquela outra do início desta narrativa, no auditório do Instituto Guanabara, naquele tempo longínquo. Só que, após longa espera, a notícia fatídica: o projetor queimara e o filme não poderia ser exibido naquela noite. A plateia ficou indignada, muitas queixas, muita reclamação. Estavam todos adorando o filme.
Porém, um amigo meu Ricardo teve uma ideia, a solução para aquele impasse. De todos ali, só eu tinha assistido, tinha até visto duas vezes. Só eu sabia como acabaria.

Resultado: todos retornaram aos seus lugares e eu, com toda essa minha elegância e modéstia, subi ao palco e contei com riqueza de detalhes, dando até um toque londrino com fog e tudo ao tão esperado final da história.

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