O presente inesperado
Aproveitando a ocasião do dia 20 de julho em que falam ser esse o dia
do amigo, cito duas amigas queridas: uma é Maria de Lourdes, que aniversaria
justamente neste dia. Ela me surpreendeu com sua ligação para dizer que mora agora
em Viçosa e que está enxutérrima, feliz curtindo seus oitenta e dois anos.
Lourdes esbanja juventude e alegria. A outra amiga é Simone, que completaria
mais um ano de vida no dia 25 deste mês. Este aniversário, ela comemora agora
em outras esferas.
Lembro-me bem daquele domingo de sol, João Alexandre, filho dela, me
ligou pedindo que eu o acompanhasse até o apartamento deles, porque não tinha
coragem de entrar lá sozinho. Precisava desmontá-lo de vez, organizar algumas
coisas pendentes antes de alugá-lo. As roupas dela já haviam sido doadas para
uma instituição de caridade.
Encontro com ele no calçadão da praia de Ipanema, pouso a mão sobre seu
ombro e saímos conversando, vendo o povo na areia. Quando conheci Simone, João
era um menino bem mirrado, seu irmão Luciano usava fraldas e tinha a mania de
cuspir nas pessoas e beijar a boca das menininhas.
Tornaram-se homens. Luciano tornou-se um talentoso desenhista. João é
fotógrafo, professor universitário, criou pós-graduação dentro dessa área. Já é
pai de três filhos e continua me chamando de tio.
Um ônibus repleto de turistas passa e aproveito para contar-lhe dos
passeios de jardineira que costumava fazer com sua mãe, quase sempre embalados
pelas nossas cantorias, isso quando não encenávamos uma briga de casal, onde
ríamos mais do que brigávamos. As jardineiras eram ônibus menores, de largas
janelas e que circularam por um tempo pela orla, saindo do Shopping Fashion
Mall em São Conrado, seguindo pelas praias até a estação do teleférico do Pão
de Açúcar na Urca.
Eu e Simone nos divertíamos com pouco ou nenhum dinheiro.
Chegava ao seu apartamento e a primeira coisa que eu fazia era retirar
da estante o “Almanhaque” do Aparício Torelli, o Barão de Itararé. Abria
aleatoriamente uma página para capturar uma frase engraçada para marcar aquele
encontro.
“Adoro esse livro, Simone. Você bem que podia me dar.”
“Um dia, quem sabe.”
Lida a frase escolhida, saíamos.
Sempre uma caminhada para ver o mar, a saia indiana dela se mexendo, os
cabelos dourados esvoaçando. Pele muito branca, olhos esverdeados. Era uma
mulher linda.
Entravamos pelas galerias para expiar vitrines e papear com vendedores.
Quando era loja de antiguidades então, era festa. Simone tinha paixão por
coisas antigas, ainda mais aquelas consideradas bregas. Uma vez, numa feira de
Petrópolis, encontrei três andorinhas azuis dessas de louça que se colocam em
varandas. Dei a ela de presente. Mãe e filho adoraram e estabelecemos que cada
uma representaria um de nós.
Certa vez, num brechó, eu a fiz experimentar um vestido de noiva bem
antigo de longa cauda. E me enfiei num fraque cheirando a naftalina. Coloquei
uma cartola e, com a permissão da vendedora, fomos até a rua. Juntou gente na
calçada para nos ver.
Diante da porta do
apartamento, João mete a chave no trinco e avisa que tudo está uma grande
desordem. A porta se abre e aquele cheiro conhecido ainda permanece. Porém,
quase mais nada em seu lugar. Os discos, as gravuras emolduradas espalham-se
pelo chão junto com caixas e mais caixas. A estante permanece intacta. Bons
livros. As paredes nuas revelam marcas e pregos. Vem um aperto no peito.
Vou até a cozinha beber água. Ali fora laboratório de experimentações,
num período de sufoco, onde eu a estimulei a fazer biscoitos amanteigados e
pães.
Retorno para a sala e espero em silêncio João remexer coisas no quarto.
Observo o móvel rústico com espelho tripartite, o cesto indígena com
duas flechas, o porta guarda-chuvas. Descubro no meio da confusão o primeiro
quadro que pintei a óleo, um barquinho ancorado em praia calma com coqueiro,
numa tentativa de ser pintor.
Relembro muitas coisas, as risadas, a boa música tocando, o vinho, a
pizza, a gatinha de estimação que adorava ficar na rede. Ali, falavamos
bobagens, mas também coisas sérias. Falavamos de amor, amizade, família, vida e
morte.
Uma vez, fizemos aquele manjado pacto do “Quem desencarnar primeiro,
dará um jeito de avisar ao outro”.
João aparece na sala trazendo uma mala e pergunta:
“Beto. Você não quer ficar com esses discos?”
Observo desanimado a pilha. Há muita coisa ali que me interessa, mas
recuso.
“Não quero não.”
“Nem mesmo os livros?”
“Desculpa, João. Mas não quero nada mesmo.”
Ele se lembra de algo e diz:
“Ah... Mas tem uma coisa que você tem que levar.”
Vai lá dentro e volta com um embrulho. Abro. A surpresa: as andorinhas
azuis.
“Mas, João... Aqui estão duas. Falta uma.”
“Falta uma?”
“Sim. Eram três.”
Um silêncio paira entre nós. Vejo as lágrimas descerem pelos olhos dele.
Ameaço fazer o mesmo. Torno a embrulhar as duas andorinhas.
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