O ovo
Lourdes
tem paranoia de limpeza.
Enlouquece
ao ver sujeira e tem horror da palavra "bactéria".
Vistoria
diariamente os cômodos da casa para detectar qualquer vestígio de poeira e, se
percebe mancha num espelho ou gordurinha no armário, parte para o ataque com seu
borrifador de álcool e o paninho flanelado.
E
assim vai desinfetando tudo, se protegendo de um iminente ataque
bacteriológico.
Eu
a conheci fazendo academia de dança de salão com Jayme Arôxa. Morando em um
apartamento no bairro do Humaitá (Rio) todo branquinho, tudo muito
limpinho, todo "clean", sempre exigiu das visitas que seus sapatos fossem
deixados do lado de fora da porta de entrada, no corredor do andar. Em seguida,
a indicação ao banheiro para lavagem das mãos.
Lourdes
adora passar roupas. Passa TODAS as roupas: os paninhos de louça, os lençóis,
as toalhas de rosto e de banho. Desliza o ferro e dobra bem certinho,
transformando tudo em pilhas de tijolinhos exatos, que ela depressa vai
guardando nas gavetas perfumadas e devidamente esterilizadas.
Zelosa
aos extremos com sua comida. Não come carne vermelha nem frango. Salada, só se
for lavada por ela. Aliás, nunca se alimenta fora de casa. Nem água bebe na
rua. Quando viaja, leva seu próprio farnel e bebida bem organizados em
recipientes plásticos com seus devidos talheres.
Outra
coisa que a deixa transtornada é ovo. Tem horror a ovo. Sempre imagina que há
um bicho morto dentro. Chega a ter ânsia de vomito.
Apesar
dessa piração, Lourdes é uma pessoa bastante divertida. Adora falar bobagens,
contar piadas e dançar. Dança muito, principalmente se a música for americana,
se for um Fox trote. E se estamos num baile, já sei qual será o seu
pedido:
“Me
roda! Vai! Me roda!”
E
obediente, a faço girar, girar, girar. E a saia rodada dela vai se abrindo como
uma flor negra até subir ao máximo, dando mostras de tudo o que há por debaixo.
Eu
rindo muito. Ela adorando ser a atração da festa.
Muito
engraçado ver a cara das pessoas incomodadas, até mesmo chocadas com a
traquinagem. Como é admissível uma senhora ser assanhada daquele jeito?
Outra
paixão de Lourdes é a fotografia. Tira fotos incríveis, apesar de nunca ter se aperfeiçoado.
Com sensibilidade, olhar artístico impressionante e generosas contribuições dadas
pela natureza, produziu belos registros que lhe renderam até prêmios em concursos.
Fui sua cobaia algumas vezes. Posei fantasiado e em trajes típicos para a criação
de fotos engraçadas.
Finalmente,
Lourdes se rendeu aos encantos da internet e começou a fazer amigos virtuais.
Entusiasmada com uma dessas amizades, colocou-me em contato com um rapaz da
África do Sul. Não sei como isso se deu. Só sei que, após um bom tempo, os três
em alegres conversas pelo chat, o cara decidiu vir ao Brasil de férias para nos
conhecer pessoalmente. Marcamos o encontro no apartamento dela.
Era
um rapaz gordinho e muito encabulado. Chegou trazendo dois embrulhos. Ela fez
com que ele deixasse os sapatos do lado de fora e pediu que fosse ao banheiro
lavar as mãos para se livrar das impurezas trazidas da rua.
"Sabe
como é, não é? Aí fora está tudo cheio de bactérias."
O
rapaz obedeceu.
Quando
voltou do toalete, entregou um presente para cada um de nós.
Abri
depressa o meu: era um lindo porta-retratos com motivos musicais e um relógio
na ponta esquerda da moldura. Esse regalo está até hoje na minha sala com a foto
da minha cachorrinha Milla.
Quanto
ao presente dela, de imediato, Lourdes estranhou a forma oval do embrulho em
papel dourado.
“O
que é isso? Um ovo de Páscoa?”
Lourdes
adora ganhar enfeites para a casa, miudezas, esculturas. Sua casa é cheia de
garrafinhas de areias coloridas, vasos e bonecas de cerâmica do Nordeste.
A
decepção ameaçou estampar-se através de um sorriso amarelo ao imaginar que
ganharia algo comestível. Fez um charme, disse que veria mais tarde.
“Abre
logo, mulher”, ordenei.
Ela
desfez o laço. Quando abriu o papel, a surpresa: era mesmo um ovo. Mas não era
de Páscoa. Era imenso, todo coloridinho, desenhadinho, riscos dourados.
Pouco
deu para apreciar aquela arte, porque a expressão de espanto dela chamou mais a
minha atenção. Sua garganta movimentou-se ao engolir seco o nojo que sentia.
“Isso
é mesmo um ovo?”
“É
de avestruz”, respondeu o rapaz todo orgulhoso. “É artesanato do meu país.”
Ela
levou a mão à boca. Ameaçou um engulho. Um constrangimento se fez.
“Avestruz!
Então... Tem um bicho morto aqui dentro?”
“Não...
O que acontece é que...”
O
rapaz nem teve a chance de explicar o processo de preparo daquela
arte. Numa fração de segundos, Lourdes agarrou o borrifador e espirrou fortes
jatos de álcool no objeto. E metade do desenho foi-se embora com o passar do
paninho flanelado.
Num
súbito ataque de engasgos, ela largou o ovo no sofá e correu lá para dentro.
Ficamos
eu, o ovo manchado e o visitante desapontado sem ter muito que dizer.
Quando
voltou refeita, Lourdes nem se desculpou. Explicou que, afastar bactérias, mesmo
as de além-mar, era seu procedimento habitual. Se o desenho do ovo se apagara, é
porque a tinta era fraca, de má qualidade.
Foi
até a cozinha preparar pasta de atum para comermos com pão e refresco de
graviola. Não resisti à brincadeira e perguntei se ela não estaria fazendo
sanduíches com carne de avestruz.
Lanchamos
contando curiosidades do Brasil e ele falou de trabalho, família, namoro, de sua
vida no outro continente. Nosso papo animado rolando e o ovo, que fingimos
esquecer, largado no canto do sofá.
Duas
horas mais tarde, o amigo africano se despediu falando de um novo encontro,
encontro este que nunca se repetiu. Calçou os sapatos e foi embora.
Lourdes
imediatamente agarrou o ovo fazendo cara de enjoo.
“Vou
me livrar logo disso.”
“O
que você vai fazer?”
“Jogar
fora.”
“Não”,
reclamei exaltado. “Isso é um artesanato típico.”
“Então,
fica pra você.”
Segurei
o objeto e me pus a examiná-lo, imaginando a possibilidade de restaurar o que
fora apagado. Mas o estrago havia sido grande. Ela estava inconformada com
minha disposição. Pedi-lhe um saco plástico para transportar até minha casa.
Novamente
ela se apossou dele e sumiu das minhas vistas. Minutos depois, ouvi um barulho
forte de algo caindo e a gaveta da lixeira se fechando.
Ela
voltou para a sala com cara de aliviada e tratou de esguichar álcool nas mãos.
“O
ovo, Lourdes?! Cadê o ovo?!”
“Não
ia deixar você levar aquilo cheio de bactérias e com bicho morto dentro.”
Fiquei
aborrecido com sua atitude, mas minha raiva durou pouco.
Caímos
na gargalhada e fizemos graça de tudo aquilo.
Mesmo
com suas manias, suas esquisitices, ela era uma grande amiga, me acalentando nos
momentos difíceis, me alegrando em tantos outros.
Formamos
uma dupla bem divertida.
A
violência e a poluição da cidade grande obrigou Lourdes a ir embora do Rio.
Partiu
dizendo que visitaria um filho em Salvador.
Alguns
anos se passaram.
Em
junho de 2012 me ligou de surpresa.
“Oh,
meu amor! Você ainda se lembra da sua parceira de dança?”
“Impossível
te esquecer, querida. Que saudade! Como você está?”
“Maravilhosa
com meus oitentinhas.”
Contou
que está perto da filha em Viçosa. Mora num apartamento espaçoso, todo
reformado e que aguarda minha chegada. Também contou que viajou ao pantanal,
foi até São Luiz e tirou muitas fotos.
“Fotos
lindas. Você vai ver. Você vai adorar.”
Lembramos
nossas bagunças, os rodopios nos bailes e do africano com o ovo.
Adoro
a Lourdes. Nunca mais a vi, mas espero ainda darmos muitas risadas nesta
vida.
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