Perigo real e iminente em show beneficente
Estava eu no sítio com meus pais, quando o
compositor Homero Ferreira me ligou convidando para participarmos de uma grande
festa no Clube Vitória, no Lins, um show beneficente para deficientes visuais.
Não seríamos os únicos, porque também iriam outros artistas.
“Quando é?”
“Hoje. Daqui a pouco.”
“Puxa... Terei que voltar ao Rio, ir até em casa e
colocar uma roupa mais adequada.”
“Mas não há tempo.”
De fato, não daria mesmo. Eu estava com uma calça
comprida jeans surrada e uma camisa um pouco manchada e com furinhos do muito
tempo de uso.
Pensei com meus pobres botões:
“Um show pra cegos... Ninguém vai reparar na minha
roupa.”
Decidi ir daquele jeito.
Chegamos ao Clube Vitória com meia hora de vantagem.
O show estava previsto para começar às nove. Conosco, um violonista de nome
Fernando.
Entramos.
Logo o presidente do clube veio nos receber com
muita alegria e nos conduziu até o ginásio, local onde aconteceria tudo.
Olhei ao redor. Estava cheio, arquibancadas lotadas
de gente, mesas espalhadas nos primeiros metros da quadra, bem pertinho de um palco
alto com uma escadaria de madeira irregular que se subia pela frente. As
primeiras mesas estavam destinadas aos deficientes visuais. Contei uns quinze,
mais ou menos. As seguintes, para membros da diretoria e convidados do clube.
Quanto ao resto, um povo de olhos bem atentos ocupando tudo, alguns agarrados ao
aramado. Muito burburinho, muito barulho de falação misturado com as caixas de
som tocando o “melhor” da música popular. Era um tal de “Eu quero tcha, eu quero
tchu...” e também “Tche, tche, rê, rê, tche, tche, tche, rê, rê, tche, tche...”
Nós nos entreolhamos. Uma preocupação me bateu.
O presidente nos levou até a mesa destinada aos
artistas, completamente vazia e disse que poderíamos pedir o que quiséssemos.
“Mas... onde estão os outros?”
“Vocês são os primeiros. Os outros vêm de São João
de Meriti numa Kombi.”
Minha preocupação aumentou.
Ele perguntou meu nome.
“Carlos Roberto.”
“Ih... Quase Roberto Carlos.”
“Pois é... Sou o contrário dele.”
“Mas sabe cantar as músicas dele?”
“Sei cantar algumas sim.”
“Ótimo.”
O simpático senhor fez sinal para um garçom que veio
com salgadinhos e cerveja.
A hora foi passando, o ginásio já não comportava
mais ninguém.
O violonista Fernando foi lá para fora para falar
ao celular, tentando descobrir o paradeiro dos outros. Voltou com uma péssima
notícia:
“A Kombi com o pessoal de São João de Meriti quebrou
na Avenida Brasil.”
“Como é?”
“Não vai vir ninguém.”
Gelei.
“Ninguém? Nenhum sequer? Jesus amado...”
Seriamos os únicos artistas da noite.
Respirei fundo e voltei-me devagarzinho para a multidão
e meus olhos congelaram na galera pendurada a sacudir o aramado.
Minha vontade era de mergulhar no copo de cerveja.
“E agora? O que vamos fazer pra acalmar essa gente?
Rebolar?”
Homero sorriu amarelo.
“Vai dar tudo certo, Betinho.”
Senti que ele também se preocupava.
Nisso, o presidente do clube voltou trazendo uma
mulatinha de top e calça leg, muito pintada, cheia de bijuterias, cabelo
tingido de louro e esticado na escova progressiva, ou “inteligente”, como
também chamam.
“Minha filha quer fazer um pedido de música.”
Tremi.
“Um pedido?”
E a mocinha:
“Vocês vão cantar músicas animadas?”
“Vamos sim, filhinha”, respondeu Homero com ar
sonso. “O que você quer que a gente cante?”
“Ah... Tem uma que eu adoro. Eu queria que
cantassem Mary Lou.”
“Mary Lou?”
“Aquela do Ultraje. Eu adoro. Eu me chamo Maria
Luíza, mas meu apelido é Mary Lou. Vocês podem cantar pra mim? Conhecem, não
é?”
Fernando, na hora, não lembrou. E a garota
cantarolou:
“Eu tinha uma galinha que se chamava Mary Lou...”
O presidente foi logo respondendo:
“Claro que eles conhecem, filhinha. Eles vão cantar
sim.”
Ela se saracoteou de euforia e correu para sua
galerinha.
Gelei e tremi.
O presidente pediu que iniciássemos, porque o
público começava a se impacientar. O Fernando tomou coragem, fez o pelo sinal e
encarou aquela escadaria torta até o palco. Decidira ir sozinho para o
sacrifício.
“Seja o que Deus quiser.”
Ele não era cantor. Era instrumentista. Plugou o
violão e começou os primeiros acordes, certo de que sua habilidade sossegaria as
centenas de alminhas irrequietas.
Mas uma enxurrada de assobios, vaias e gritos foram
se espalhando, abafando suas notas. Impossível saber o que ele tocava. Identifiquei
a garota da escova “inteligente” a agitar sua turma que, em coro, começou a
pedir:
“Mary
Lou! Mary Lou! Mary Lou!”
O presidente correu na nossa mesa:
“Isso não pode ser! Ninguém quer ouvir isso! O povo
quer cantar, quer dançar!”
A embromação não seria boa estratégia.
Homero acenou para o colega, pedindo que parasse. E
partiu como quem vai encarar uma guerra para salvar o colega derrotado.
Com dificuldade, escalou aquela escada de madeira
torta. O ginásio se calou para observar aquele senhor de cabeleira branca
plugando um violão elétrico vermelho de formato esquisito, quase sem os trastes
para dedilhar.
No que começou a cantar uma música de sua autoria,
a vaia retornou ensurdecedora.
Interrompeu. Resolveu cantar bossa nova.
E o coro da “Mary Lou” foi aumentando em
integrantes.
Homero partiu então para as marchinhas
carnavalescas. Cantou “Me dá um dinheiro aí”, de autoria dele, mas a galera
estava possuída. Ao invés de dinheiro, desabou sobre ele uma chuva de bolas de
papel e copos plásticos.
Muita gritaria, muitas vaias.
O grupo de cegos nas primeiras mesas pareciam não
se abalar. Apenas balançavam suas cabeças.
Eram, literalmente, cegos em tiroteio.
O gorducho presidente, novamente, veio dessa vez,
para me pressionar.
“Escuta aqui, você não é o cantor?”
“Sim,” gaguejei.
“Então, vai lá e resolve isso.”
"Mas é que..."
"Cante algo que a turma goste. Você está
com a faca e o queijo.”
Eu me sentia o queijo prestes a ser fatiado.
O homem ainda acrescentou:
“Vocês são artistas. Estão na vantagem. Conhece
aquele ditado? Em terra de cego, quem tem um olho é rei."
Comentário desnecessário dito, fez um sinal para meus
companheiros.
Aí, não teve jeito. Homero encostou a boca no
microfone e chamou:
"Agora vocês vão conhecer um grande artista,
uma grande voz que alegrará a festa de vocês. Gostaria de chamar o cantor da
noite, o talentoso Carlos Roberto."
Raras palmas. Minhas pernas tremiam demais. Estava
prestes a me sujar nas calças.
Levantei-me e caminhei, como quem vai ao cadafalso,
mirando aquela estranha escadaria do palco. Pisei com insegurança o primeiro
degrau e os seguintes. Fui devagar. Eram degraus tortos e de tamanhos
desproporcionais. Quando já ia ultrapassar o último, o bico do sapato prendeu na
borda.
E eu caí. Caí de quatro, de bunda pra cima.
O ginásio inteiro veio abaixo. Gargalhada geral,
gritaria, zoeira ensurdecedora. Tudo ali tremeu, acho que até o bairro.
Depressa me pus de pé, vermelho qual pimentão.
Ajeitei a roupa, acenei para todo o lado com minha cara de tacho. Vi muitos
apontando pra mim, rindo de se mijar. Até os cegos pareciam ter visto tudo.
Uma situação vexaminosa aquela. Esperei os ânimos
se acalmarem para iniciar qualquer coisa. Não fazia ideia do que cantaria.
“Canta o que o presidente quer: Roberto Carlos”,
sugeriu Homero.
E comecei:
“Quando eu estou aqui, eu vivo esse momento
lindo...”
Para minha surpresa, um silêncio se fez. Parecia um
milagre dos céus. Na terceira frase da música, um aplauso foi se espalhando,
foi correndo o ginásio. Junto um gritinho de “Gostoso” seguido de risos.
Eu suava frio. Mas estava ali pra encarar. E
emendei:
“Ainda bem que tocou essa música suave...”
E depois:
“Eu sou aquele amante à moda antiga...”
Casais foram se formando e logo tudo tomou aspecto
de baile.
Mandei Roberto Carlos direto:
“Não adianta nem tentar me esquecer...”
O povo adorou. E fui levando:
“... detalhes tão pequenos de nós dois...”
Um sujeito magrinho e duas garotas vieram até a
beira do palco e ficaram acenando bilhetinhos com sugestões. Só breguice.
Enquanto cantava, ia recolhendo aqueles papeizinhos
e enfiando-os no bolso da calça para nunca mais olhar.
Parti para um repertório mais movimentado, músicas
de Marina, Lulu Santos e Tim Maia. Com isso, acreditei ter superado o
lamentável incidente da escada.
Lá pelas tantas, o corinho recomeçou:
“Mary
Lou! Mary Lou! Mary Lou!”
Resolvi que era hora de parar. Anunciei o
intervalo.
E uma saraivada de vaias dos descontentes.
De volta à nossa mesa, virei uma tulipa de cerveja
num gole só.
“Você se saiu bem, Betinho”, elogiou Homero.
“Não sei se tenho condições de encarar isso de novo
não.”
O presidente veio nos cumprimentar satisfeito e
pediu que não demorássemos muito, aproveitando para alertar que, em nosso
segundo bloco, seria mais interessante se apresentássemos umas
"musiquinhas mais pra cima, mais animadinhas”.
“Ah... E não se esqueçam de atenderem ao pedido da
minha filhota. Mary Lou.”
Precisávamos respirar um ar lá fora. Ficamos um
tempinho na calçada diante da portaria do clube para decidirmos como seria
nosso próximo enfrentamento, quando um mulato com violão nas costas veio e se apresentou como Jurandir Sete
Cordas. Fazia parte do grupo que viria tocar. Homero o inquiriu:
“Mas... Você não estava com o pessoal lá em São
João de Meriti?”
“Não deu pra ir. Briguei com minha sogra, perdi a
Kombi e vim direto pra cá.”
Bendita sogra, pensei.
O cara quis saber ansioso:
“Como está o negócio aí dentro? Tá animado?”
“Tá bombando”, respondi.
“Que legal! To me coçando pra tocar.”
Ele deu um tapinha nas costas de cada um de nós e entrou.
De onde estávamos, vimos o Jurandir ser
cumprimentado pelo simpático presidente do clube, subir as escadas do palco sem
tropeçar e plugar seu instrumento.
Novamente a onda crescente de assobios e vaias.
Nós nos olhamos e, sem mais pensar, corremos para o
carro.
“Vamos cair fora daqui.”
Conseguiria o Jurandir se safar?
Quando já davamos a partida, lembro-me de
identificarmos o som do coro comandado pela garota da escova “inteligente” se
misturando aos gritos da multidão enfurecida:
“Mary
Lou! Mary Lou! Mary Lou!”
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