Meu dia de índio

          Certa vez, um conhecido meu, Seu Vianna, um senhor já muito idoso, me abordou na rua e me fez a seguinte pergunta:
- Você gosta de artesanato?
- Gosto sim. Por que?
- Vamos até minha casa. Quero te dar uma coisa.
Fez mistério. Nada mais disse.
Chegando lá, ele foi buscar o regalo: uma máscara-escudo talhada em madeira, olhos, boca, cabeleira de palha, um chifre na testa e uma etiqueta atrás na alça, identificando que aquilo era da tribo dos índios caraívas.
- Peça de colecionador, viu? – reforçou Seu Vianna – Mas não a quero mais. Fique pra você. Cuide bem dela.
Não gostei da máscara. Achei feia, assustadora até, mas aceitei o oferecimento constrangido. Em casa, tratei de enfiá-la no fundo do armário e ali a esqueci por um tempo indefinido.
Quando me mudei para o apartamento de Botafogo, na ânsia de decorá-lo, decidi revelar aquela máscara ao mundo e a instalei bem diante da porta social, funcionando como uma espécie de carranca a proteger minha oca dos espíritos malévolos. Pouco tempo ficou ali. Pelo impacto que provocava naqueles que me visitavam, foi transferida para a parede diante da entrada do banheiro. Seu poder de quebrar a sonolência dos desavisados na madrugada a fez retornar ao fundo do armário.
Um tempo depois, minha irmã veio de Porto Seguro trazendo um presente de Cabrália para decorar minha casa: um arco e flechas de penas roxas dentro de um cesto, trabalho confeccionado por índios pataxós. Enfeitaram o corredor que levava aos quartos. Lembrei-me da máscara e decidi dar-lhe nova chance. Juntou-se àquela composição.
O problema é que, com a constante corrente de ar a circular por aquela passagem, frequentemente, a máscara e as flechas se revoltavam, se desarrumavam na parede, se enganchavam na roupa de quem passasse, suas peninhas roxas saíam voando longe para a sala. Eu catava, colava, rearrumava tudo. Até que uma poeirinha no chão denunciou cupins a fazerem a festa naquelas relíquias. Joguei veneno algumas vezes, mas não adiantou. Os bichos pareciam se fortificar. Decidi doar aquilo tudo ao Museu do Índio que fica na Rua das Palmeiras, lá mesmo em Botafogo.
Certamente, teriam condições e produtos apropriados para conservação.
Minha vizinha, quando soube da minha ideia, me deu parabéns. Disse que guardar esse tipo de objeto em casa dava azar.
Vesti meu uniforme de ginástica preferido, calcei sandálias, ajeitei o arco e as flechas nas costas, montei na bicicleta e sai pela rua, levando a máscara-escudo na mão esquerda. Percebi que, por onde eu passava, as pessoas achavam graça da minha figura. Na época, eu ainda tinha cabelo, cabelo bem comprido e, sem ter me dado conta, o short e camiseta, ironicamente, eram da mesma cor das peninhas roxa. Parecia de propósito. Armadilha do inconsciente.
Abstrai. Segui pela Rua General Polidoro, dobrei a Rua São João Batista e, ao atravessar a Voluntários da Pátria, faltando pouco para entrar pela Rua das Palmeiras, sofri a pressão de um ônibus e fui empurrado para o meio fio.
Diante de mim, um bueiro aberto sem tampa.
Não houve tempo para frear. A roda da frente entrou ali e eu capotei, voei alto e fui me esborrachar na poça de água suja da esquina. Por sorte, evitei que uma das flechas atravessasse minha garganta. Um susto. Sobrevivi. Pernas e mãos raladas, meu pé direito e braço doendo. Tirei a camiseta para estancar o sangue de um dos joelhos. Fui acudido por passantes, que me ajudaram a catar as flechas e a máscara. Retirei a bicicleta emborcada do bueiro. A roda empenada se desprendera completamente dos aros, feixes metálicos abertos em todas as direções. Abandonei uma das sandálias com a tira arrebentada. Foi então que me dei conta do rasgo imenso no meu short, deixando à mostra minha nádega esquerda. Tentei abstrair. Poucos metros me distanciavam do meu destino. Mesmo naquele estado de miséria, levaria a missão até o fim.
Atravessei o portão do museu carregando aquela tralha toda.
Uma jovem atendente e um segurança estranharam a criatura que acabava de entrar ali mancando e arrastando aquele destroço de bicicleta.
Descabelado, imundo, tingido de vermelho em vários pontos do corpo, descalço num dos pés, quase nu, a bunda de fora. Seria um índio?
- Em que posso ajudar? – perguntou a moça com cara de assustada.
- Quero fazer doação – respondi ofegante - Quero doar esses objetos aqui.
Coloquei sobre a mesa tudo o que trazia. Ela e o segurança fizeram cara de nojo para a máscara.
- Olha... No momento, o museu não está aceitando doações, falou o segurança.
- Não? Como não?
- Nosso depósito está lotado. Não cabe mais nada. Nem temos como cuidar...
Respirei fundo, sufocando a dor que sentia e apontei para aquilo tudo.
- Vejam bem... Essas peças são autênticas. Reparem a máscara dos Caraívas. Pertenceu a um colecionador. Tem até um selo para provar.
Nenhum dos dois se sensibilizou.
- Desculpe, mas não será possível mesmo, disse a atendente.
- Pois eu não vou levar nada disso de volta – devolvi com irritação – Façam o que quiserem, joguem na lixeira mais próxima.


Dei as costas e a missão por encerrada. Sai de lá arrastando o trambolho que se transformara minha bicicleta, certo de ter os olhos daqueles dois cravados no meu traseiro branco.

Comentários

Realmente, um dia de índio na cidade!

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