Tanto mar
Esta semana, fiz uma série de questionamentos sobre as coisas que já vi, vivi, aprendi nesta vida, após assistir ao “O Grande Circo Místico” em cartaz no Teatro Net Rio. Deu melancolia danada ver aquelas pérolas do Edu Lobo e Chico Buarque inseridas num texto ruim e manjado, apesar da beleza visual e belas vozes. E, ainda por cima, músicas de outro espetáculo “O Corsário do Rei” enxertadas para adicionar mais dramalhão naquilo que se alongou por três horas. Foi demais.
Se eu desconhecesse o teor daquelas composições, assim como a beleza do Balé Guaíra, voltaria para casa tranquilo. Por que fui me embevecer com a interpretação magistral do Marco Nanini no papel do pirata francês? Eu me contentaria e, talvez me comportasse como a plateia, aplaudindo de pé efusivamente. Não foi o que aconteceu.
Por que fui gostar tanto de Chico Buarque e ter a pretensão de querer saber cantar todas as suas músicas? Eu vivia competindo com um amigo para ver quem é que conhecia mais. Cada disco novo que saía, corríamos para comprar e aprender.
Aí, vem um regente, de um coral que participei, propor lindo arranjo de vozes para Feijoada Completa. A ala jovem dos coralistas torceu o nariz porque desconhecia a música, assim como o próprio Chico Buarque. Apenas ouviram falar. Eu me senti um operário em desconstrução. A reação foi igual com Gil, Milton e Caetano.
Lamentei, reclamei baixinho atrás da porta: “Tempo Rei, Mãe Senhora do Perpétuo socorrei”. Porém, com o coração ainda esperançoso de estudante, embarquei no metrô rumo ao avarandado do amanhecer de uma palestra sobre música popular brasileira. Na telinha de anúncios do vagão, a imagem do falecido Gabriel Garcia Marquez rapidamente com a notícia desatualizada: “Agrava-se o estado de saúde do escritor colombiano”. Um homem leu aquilo e comentou com outro ao lado: “Ih! O Saramago tá mal. Vai bater a caçoleta.” Em mim, bateu irritação e tristeza de uma solidão de cem anos. Pra que fui ler tantas estórias dele? Para depois me irritar com essa gente? Abstrai. E sai feliz e mais enriquecido da tal palestra sobre MPB.
Dias depois, me vejo numa mesa com dez pessoas em um bar da Lapa, cuja atração principal era uma irritante TV de trinta polegadas. Um dos presentes, ator/diretor de teatro de seus quarenta e poucos anos, contava seus feitos. Para animar o papo, citei peças e filmes consagrados. Rolou um constrangimento, porque ninguém ali sabia do que eu falava. Desconheciam atores antigos. Eu me senti um ET naquela mesa.
Não sou especialista, muita coisa não sei, mas acredito que uma pessoa que se diz profissional em tal área deva conhecer o básico do básico, tenha assistido ao menos um clássico que seja, um “Sunset Boulevard”, um “Rei Lear”, um “Pluft”...
Não era o caso do mancebo, assim como os demais. O assunto teatro perdeu para novelas, os filmes “Marley e eu”, “A menina que roubava livros” e os seriados “The Games of the Thrones” e “Once Upon a time”, onde personagens dos contos de fadas transitam entre o mundo real e o imaginário, com Branca de Neve avó e guerreira, a rainha má atormentada por conflitos psicológicos, o Capitão Gancho, belo, sedutor e sofrido. Achei tudo interessante, bacana, mas eu estava me sentindo um perdido em noite suja. Simultaneamente, na TV do bar, Simone era entrevistada pelo Jô Soares. Interrompeu-se o falatório para uma análise do visual da cantora. Porém, ninguém sabia dizer algum sucesso dela, além das cantigas de Natal. Um dos presentes cantarolou “O que é o que é?” e eu acabei soltando que havia visto shows do Gonzaguinha, um artista que eu considerava carismático. A maioria não me deu bola, apenas o tal que cantarolara questionou-me, disse não concordar, baseado em coisas que outros viram naquele filme biográfico e contaram pra ele. Ainda na telinha irritante, Nelson Motta fazia breve homenagem a Beth Carvalho. Aí, um senhor ao lado soltou seu amplo conhecimento musical ao dizer que aquele jornalista tinha comido todo mundo e que a Beth gravara “A vida é um moinho”. Na verdade, ele se referia a “O mundo é um moinho”. Para fechar com chave de ouro, acrescentou, com muita propriedade, que o Cartola tinha feito a música para uma filha ou sobrinha que virara prostituta. Não me atrevi a interferir, não quis mais abrir minha boca. Eu estava sendo visto ali como pedante, o sabe-tudo. Resolvi sair dali, estranho no ninho, sem derramar lágrimas amargas e lavando as mãos praquela gente.
Embarquei num bonde chamado Tijuca. Mas a sensação que tive foi estranha. Aqueles conhecimentos que eu adquirira no passado, antes instrumentos de sedução, de repente, viraram empecilho, distanciamento, barreira.
Após ter lido a biografia que o jornalista Sergio Cabral escreveu sobre Ary Barroso, fui até a Rua Andre Cavalcante verificar um dos endereços do compositor. O sobrado virara um hotel. O dono do estabelecimento, um senhor português, me atendeu desconfiado e eu falei a respeito do que li sobre o autor de “Aquarela do Brasil”. Ele virou-se incrédulo para a funcionária e perguntou se ela sabia quem era o tal Ary. No que ela respondeu que devia ser o nome de um cantor de um grupo de pagode. Ou seria candidato do The Voice? Comentei este fato numa roda de gente para provocar riso, mas não soou tão engraçado assim. Ary está caindo no esquecimento. Nessa mesma roda, relembrei que havia assistido no gargarejo ao show do Vinícius de Moraes com Tom Jobim, Toquinho e Miúcha no Canecão. Pra que fui contar aquilo? Teve um que duvidou. Outro me chamou de velho. Um terceiro disse que adorava Vinicius e declamou uma frase que ele julgava ser dele: “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Como eu morro ontem, nasço amanhã, ando onde há espaço e meu tempo é quando, não me abalei. Apenas agradeci ao “Poetinha” por conhecer e usar seus poemas em determinadas ocasiões para impressionar, até mentir dizendo serem meus. Sempre tem alguém que acredita, não é? Eu sabia de cor e salteado vários. Mas ri muito do sujeito sem noção pronunciando Fernando Pessoa sem saber. Afinal, pra que chorar? O sol vai raiar mesmo.
Foi num sol de Ipanema que encontrei um músico conhecido. Ele me revelou estar preparando show onde incluiria homenagem ao Caymmi. As escolhidas, o óbvio do óbvio: Marina, Vatapá, Saudade da Bahia, Maracangalha. Sugeri outras lindas. Só que, fora aquelas quatro, mais nada ele conhecia. Não conhecia e nem estava interessado em conhecer. Despedimo-nos e eu segui sozinho pelo calçadão até a estátua do dito cujo, frustrado pelo fato do meu conhecimento não ter contribuído em nada. Por que eu tinha que saber mais músicas do Dorival? Depois relaxei diante do mar a quebrar na praia, bonito, bonito. Azar do músico, se não sabe. Lavo as mãos pra ele.
Porém, no aniversário de uma amiga, a Deus do Céu pude agradecer, ao conversar com um jovem compositor da Imperatriz Leopoldinense. Rapaz criado na humildade de uma quadra de escola de samba, ele me surpreendeu ao me falar de música, seus gêneros, seus compositores. Bateu esperança divina. Nem tudo está perdido.
Mesmo contentamento tive ao assistir crianças pobres de uma comunidade tocando Waldir Azevedo, Zé Keti, Mauro Duarte, Wilson Batista, Claudionor Cruz e outros. Nestas horas, a gente vê que, na montoeira do descaso, da ignorância, muitos navegam reto, incólumes. Artistas de rua, abastados, povo simples sem estudo, velhos, novos... Gente que quer aprender, gente que faz arte, que produz maravilhas.
São piratas carregados de ideias numa guerra entre o saber e a estupidez. Neste cenário de estrelas, onde muitas já não estão e outras despontam, há muito oceano para se desbravar ou apenas um mar para se lavar as mãos.
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