Duelo na pista de dança
Manhã de segunda-feira, eu com o
coração e o croquete do Alemão quase saindo pela boca, unhas cravadas no
assento traseiro do automóvel em alta velocidade pela rodovia Rio-Juiz de Fora,
numa média de velocidade de cento e vinte por hora. O motorista Ederson não se
importa com as curvas perigosas, despreza a cerração e a chuva forte que cai em
alguns trechos. Ao seu lado, Maria de Lourdes tagarela com ele, sem qualquer
temor de riscos. Sogra e genro se entendem bem. Pela tensão, não consigo participar
da conversa nem entendo o que dizem. Devem falar coisas bem engraçadas, porque se
rasgam de rir. Uma segunda parada no Salvaterra de Petrópolis ameniza meu enjoo.
Observo os folheados de queijo e as convidativas empadas. Não tenho animo de
comer mais nada.
Estou ali por insistência
daquela minha companheira de dança e passaremos a semana inteira na casa da
filha Maria Regina na cidade mineira de Viçosa, onde dois bailes tradicionais
acontecerão em festejos pelo dia das mães.
Voltamos para o rali
desesperado da estrada e o possante automóvel conclui a viagem quatro horas
depois. Chegamos às duas e meia da tarde e saudados com alegria pelo netinho
Rafael cantando “Mama África” do Chico Cesar. Maria Regina já nos espera com a
mesa posta e com um amigo da família chamado Mario Augusto, jovem nortista todo
cerimonioso, que nos cumprimenta sem nos olhar. Sua atenção está na travessa de
macarronada fumegando.
Durante o almoço, falamos dos passeios
que faremos e dos dois bailes que vão acontecer, um na sexta, outro no domingo.
Maria Regina relata pequenas modificações que fez no La Coccinella, restaurante
de massas que possui, localizado bem ao lado da casa. O amigo Mario Augusto só
sabe conversar sobre política. É partidário febril do PSDB. E Ederson comenta,
muito por acaso, que precisa trocar os amortecedores do carro. No intervalo
para a sobremesa, Lourdes se levanta e vai ao telefone, faz uma ligação e volta
com a novidade:
- Acabei de marcar aula amanhã com
o tal professor João.
- Por que fez isso, mamãe? –
desagrada-se Maria Regina – Que maluquice! E você precisa de aula?
Fico sem entender. Elas me
explicam que o professor João é o grande mestre na dança de Viçosa, muito
respeitado na cidade.
- E você falou pra ele do seu
nível espetacular? – pergunto.
- Menti – responde a debochada
sorrindo – Inventei que não sei dançar.
E solta sonora gargalhada.
- Minha sogra vai lá só pra
tirar sarro do homem, não é? – interpreta Ederson.
Lourdes tenta se explicar:
- Ora... Sarro não. Eu quero
pesquisar, saber como é o método dele.
Minha amiga é figuraça, uma das
criaturas mais engraçadas e sonsas que conheço. No dia seguinte, cedo, prepara-se
toda para interpretar sua personagem. Veste roupa discreta, cobre com um lenço
os cabelos tingidos de cobre, joga um casaquinho por cima e sai para a rua parecendo
mais uma senhorinha frágil que vai para sua aula de iniciação no tricô.
Sequer imaginávamos as
consequências que aquela brincadeira traria. Horas depois, ela retorna com sua
nada discreta gargalhada:
- Gente! O homem é uma coisa
tenebrosa. Olhar de tarado, todo curvadinho e com uma peruca ridícula na
cabeça.
- Quantos anos a senhora acha
que ele tem, mamãe?
- Sei lá. Ele é Matusalém. Deve
ter uns quinze, vinte anos a mais que eu.
Interrompe para rir alto.
Depois continua:
- Bem na entrada da casa dele
tem uma placa escrita “Professor João E.C.”
- E o que será “E.C.”?
- Sei lá, garoto. Acho que é
“Espinhela caída”.
- A aula foi boa, pelo menos?
- Nada. Fez comigo uns passinhos
básicos mixurucas. Disse que eu levo jeito e quis marcar outra aula?
- E você marcou?
- Claro que não. Falei que foi
só uma tentativa, que não sou boa de aprender e nem gosto muito.
Nos dois dias consecutivos,
passeamos bastante por Viçosa. Lourdes com seu traje peculiar, sempre a blusa
de alcinha e saia rodada dessas que se abrem como uma flor ao menor movimento. Conhecemos
o Condomínio Camari, um shopping, a residência do presidente Arthur Bernardes e
o Centro Cultural Guerra Peixe.
Em casa, percebo que o netinho
Rafael já está completamente encantado comigo, me chamando para jogar jogos,
chutar bola, brincar de luta e montar nas minhas costas.
- Seu nome é mesmo Beto?
- Beto é apelido. Sou Carlos
Roberto.
- Ih! Que maneiro, Roberto
Carlos! Você tem irmãos?
A avó interrompe o interrogatório:
- Pergunte ao “Manoel” Beto o
que quiser, mas lá na rua, que vamos agora comprar doce de leite.
- Oba!
Lourdes, quando não me chama de
“garoto”, acrescenta sempre o “Manoel”, porque diz que eu sou o quarto filho
dela. Além da Maria Regina, gerou Manoel Carlos e o Manoel Francisco, o mais
velho que mora na Bahia.
Saímos de mãos dadas com o
pequeno pelo campus da universidade até o mercado que fica lá dentro. No som
ambiente, a música “Começaria tudo outra vez” (Gonzaguinha) incentiva Lourdes a
se envolver nos meus braços e a me obrigar a conduzi-la por uma daquelas alas
de produtos. O pequeno Rafael delira. Giramos para cá, para lá, eu a rodopio duas
vezes. Todos param para nos ver. A música já vai terminando e eu finalizo com a
pose que Lourdes mais gosta, a mais ousada, onde a dama eleva seu joelho até a
cintura do cavalheiro. Irrompem aplausos dos clientes e das caixas. Agradecemos
modestamente, pegamos nossos potes de doce de leite e ganhamos a rua.
No calçadão da cidade, um rapaz
todo pintado de dourado, imóvel diante de uma floricultura, nos faz parar para
jogarmos moedas, na intenção de vê-lo se mexer. Um travesti chamado Brenda se
aproxima de nós e nos incentiva a falarmos pencas de bobagens, na tentativa de
fazermos com que o “estátua viva” sorria. Ele se mantém firme na sua função. Só
sossegamos quando notamos, vitoriosos, um leve deslocamento dos seus lábios.
Prometemos voltar depois.
- Adoro Viçosa, “Manoel” Beto –
suspira Lourdes – Esse sossego, essa paz... Poder falar besteiras com gente
como a Brenda. Penso em vir morar aqui.
- Fala sério? E o apartamento
no Largo dos Leões?
- O que é que tem? Vendo e me
mudo pra cá. O Rio está barulhento, violento, as ruas sujas. E as calçadas? Um
horror. Outro dia, quase me esborrachei no chão. Sou uma senhora de setenta
anos. Quero qualidade de vida, garoto.
Minha amiga, constante parceira
nos bailes e nas aulas no Centro Jayme Arôxa, faz tempo que anda com essa ideia
fixa depois que viu um carro mandar para longe uma mulher, bem defronte ao seu prédio.
Lourdes teme morrer de atropelamento, ou pior, sofrer queda, ficar inválida e
não dançar nunca mais.
Quinta-feira, nós dois caminhando tranquilos
e fora da calçada, vozes entoando “Eu sei que vou te amar” (Tom e Vinícius)
despertam nossa curiosidade. Seguimos o som. Vem do segundo andar de um prédio
simples. É um tradicional clube, o Atlético. Subimos as escadas para conferir. Num
amplo salão, um coro de senhoras ensaia para o dia das mães. Há também
senhores.
Cantam bonito. Uma graça. Nossa
presença inusitada ali - eu de short, camiseta e gorro afro, ela com sua saia
preta rodada - logo desperta a atenção daqueles veteranos rouxinóis. Passam a
cantar o restante da música com os olhos pregados na gente. Assim que terminam,
a mulher que faz a regência, com ares de chefona, avisa que a cantoria está
encerrada. A partir dali, farão a dança. Ela vem direto nos abordar e se
apresenta como Maria.
- Gostaram?
- Sim. Muito lindo.
- Não querem ficar para ver
nossa aulinha de dança?
- Claro. Frequentamos uma
academia lá no Rio de Janeiro.
- Verdade? Que curioso! Certamente
vocês já devem saber do baile de amanhã no Clube Parque das Águas, não?
- Sim. Com certeza. Nós iremos.
- Que ótimo. Já que são de
academia, façam uma demonstração pra gente.
Lourdes ensaia uma timidez, mas
eu a conheço. Sei que está doida para se exibir. Observo os presentes que devem
regular com ela na idade. Porém, ninguém ali possui aquele corpo esguio, o modo
arrojado de se vestir, o cabelo tingido daquele jeito.
Uma senhora chamada Clarice vem
nos interromper com olhos lacrimejando, agarra minha amiga e quase a sufoca:
- Minha irmã! Minha irmã! Há
quantos anos não nos vemos? Me abrace forte.
E desata a chorar agarrada
nela. Um constrangimento.
Lourdes tenta, com custo, se
desvencilhar da chorosa.
- Irmã? Querida. Está havendo
um engano. Olha... Eu...
- Sabia que um dia iria me
procurar, maninha – insiste a equivocada – Tantos anos. Que saudade! Obrigada,
Senhor!
Minha amiga consegue se
desgarrar dela.
- Escute. Não sou sua irmã. Não
sou.
- Como não é? Você não é a
Clotilde que mora em Goiânia?
- Que Clotilde! Que Goiânia! –
rebate, ameaçando o riso – Eu sou do Rio.
Dona Maria faz com que a outra
se afaste e avisa:
- Atenção pessoal! Esses amigos
vão fazer uma demonstração de dança agora pra gente.
E nos leva até o centro do salão.
- Um bolero? Pode ser?
- Ótimo – concordo.
Ela vai até a aparelhagem de
som enquanto armamos nossa pose.
- Que mulher maluca, Beto! Me
chamando de irmã.
- Renegando a família, não é,
Dona Clotilde? Que feio! – debocho.
Fora o embaraço, Lourdes não
suporta que pessoas estranhas a agarrem. Tem paranoia de doença, pavor de se
contaminar com alguma bactéria.
Faz-se uma grande roda a nossa
volta e o bolero “Quizás, quizás, quizás” (Osvaldo Farrés) começa. E nós dois saímos
bailando, circulando nos movimentos básicos. Minha parceira não muito concentrada
no início, preocupada em saber se sua blusa está ou não babada pela chorona. O povo
ao redor parece se deliciar com nossa habilidade e a variação de passos que
vamos impondo gradativamente. Depois, faço-a rodar e a saia dela se abre,
revelando, em alguns momentos, as pernas ainda rijas. Mas, na quarta volta, Lourdes
aperta com força minha mão e balbucia:
- Chi... Minha Santa Pelágia.
Estamos fritos, garoto. E agora?
Bem na entrada do salão, os
olhos crivos na gente, o professor João “Espinhela Caída” acompanha a sua falsa
aluna iniciante evoluindo com maestria, executando passos elaborados que
ninguém ali, nem ele, conhece.
A música termina e, pelo
embaraço, não conseguimos concluir a pose de encerramento. Lourdes vai até o
mestre para cumprimentá-lo, mas ele, com seu rosto avermelhado, certamente de
raiva, alisa a peruca e apenas diz:
- Então a senhora não sabe
dançar e nem gosta?
- Sabe o que é, professor... Eu
queria...
- A senhora quis me fazer de
palhaço – brada o irritado.
E lhe dá as costas. Novo
constrangimento.
Saímos rápido dali com Lourdes tentando
disfarçar sua vergonha.
- Que situação, hein? O
peruquento agora é um inimigo. Com certeza, vamos encontrar essa gente toda no
baile. Vai ser uma guerra.
- Guerra foi me livrar daquela
mulher me agarrando, me chamando de irmã.
- Você não percebeu, mas ela
estava com o nariz escorrendo – provoco.
- Jura? Argh! Que nojo!
Lourdes aperta o passo para
chegar logo em casa.
Assim que entra, grita para a
filha:
- Maria Regina! Ferve uma água
aí depressa!
- Vai tomar chá, mamãe?
- Não. Vou ferver a blusa.
A noite de quinta-feira no Jarbinhas
(ou Manjubinhas), famoso bar de Viçosa promete. O gerente da casa anuncia ao
microfone que, dentro de instantes, acontecerá o show de Carla Picorelli e de
Gleison Tulio.
- Gleison Tulio? Eita –
resmunga Lourdes – Será cantor sertanejo? Odeio.
Chamo o garçom e peço uma bandeja
de gurjão de frango. Minha amiga não garante que vá comer. Não come nada fora
de casa. Ela corre os olhos pelo ambiente quase lotado, até reconhecer um dos
dois rapazes que disputam uma porção de fritas numa mesa no fundo.
- Aquele lá não é o garoto “estátua
viva” da floricultura?
- Será?
- É ele sim. Nem se lavou
direito. Vejo daqui as manchas de tinta no pescoço.
- Que olhos de águia você tem,
mulher.
- Fico de olho em tudo, garoto.
Não perco nada.
Lourdes está um pouco
contrariada porque, minutos antes, a filha dela Maria Regina e o marido Ederson
estavam conosco, mas tiveram que sair, a hora avança e precisavam colocar o
pequeno Rafael na cama. O cerimonioso amigo Mario Augusto também fizera rápida
aparição, mas ninguém o incentivou a fazer suas reflexões políticas.
O garçom traz nossos
refrigerantes e avisa que o gurjão vai demorar.
- Devíamos ter comido no
restaurante da Maria Regina. O pizzaiolo Xexeca lá do Coccinella faz uma massa que
é dos deuses. Esse treco de frango que você pediu deve ser uma porcaria, deve
vir cheio de bactéria.
Sua reclamação é interrompida
com a chegada de um amigo nosso em comum, o João Batista, um sujeito reservado,
calado, quase mudo, acompanhado por duas mulheres de meia idade opostas a ele,
falantes, sorridentes, esfuziantes. Juntamos uma mesa com a nossa depois das
apresentações. Uma delas, a mulata Toninha, faz a linha assanhada reprimida e é
detentora de poderoso buço, quase um Salvador Dali. A outra, a morena Heleninha,
de olhares verdes lânguidos, se esfogueia toda no segundo copo de chope, remexe
o decote, louca para revelar suas qualidades, seus atributos. As duas, viúvas.
Papo vai, papo vem, falamos
sobre nossos passeios, do baile que acontecerá e reclamo do gurjão que não vem.
Heleninha, ao meu lado, se queixa do frio e, sem cerimônia, enfia sua mão dentro
do bolso esquerdo da minha calça para se aquecer. Tem então a feliz surpresa de
não encontrar o fundo. Um defeito da calça, apesar de nova. Qualquer coisa que
entrasse ali iria direto para vasto território. Animada com a descoberta, alisa
os pelos da minha coxa e afins, repetindo uma situação que vivi num passado
distante. Lourdes percebe logo meu embaraço com aquela mulher abusada passando
dos limites.
- Cancela o gurjão e pede a
conta, garoto – ordena – Isso aqui já deu.
- Vamos perder o show do
Gleison Tulio?
- Que Gleison Tulio, que nada.
Deve ser um chato de galochas. E amanhã, levo esta sua calça pra consertar na
costureira.
Sexta-feira. Sol. Conheço o
Armazém de Café, local de trabalho do calado João Batista e, na companhia do
pequeno Rafael, visito o horto florestal. Um simpático senhor cuidador do
lugar, Seu Vivi, nos mostra a árvore que dá coité, o pau-brasil e gingko biloba
(árvore leque).
No Clube Parque das Águas, o frio
noturno provoca névoa. Muitos carros chegam, o salão se enche de gente e a
orquestra do maestro Zé Boia ataca “It’s not for me to say” (All Stillman –
Robert Allen). Eu e minha partner adentramos na maior elegância, conduzidos até
lá pelo casal Maria Regina e Ederson. O povo nos olha com desconfiança. Eu todo
de preto, camisa de manga comprida, calça e sapato verniz. Lourdes embrulhada
num casacão longo, prestes a revelar a saia rodada e os dois saltos altíssimos,
próprios para a ocasião. Aquilo me preocupa.
- Você notou a pista? Granito.
Escorrega como sabão. Será “Holliday on Ice”.
- Sossegue. Forrei a sola dos
meus sapatos com borracha. Sou esperta, garoto.
No meio de tantos músicos, há
um baixinho engraçado, magro, bastante espevitado que se agita todo enquanto toca
percussão. Também toca violino.
- Olha só aquele sujeito ali,
“Manoel” Beto. Parece um “Anão trifásico”.
- Esquece o anão e veja quem
acaba de chegar. O velho professor da peruca.
- Ui. O João “Espinhela Caída”.
Será que ele não vai mesmo falar com a gente?
Mais parecendo mafioso que
dançarino pelo casaco comprido que veste, o célebre senhor entra de nariz em pé,
braços dados com uma loura de cabelo bombando no laquê a reluzir tanto quanto a
peruca que ele usa. Atrás deles, o conhecido grupo do Clube Atlético. Parece um
exército. Passam pela nossa mesa, alguns fuzilando-nos com o olhar, outros, em
discreto cumprimento.
- Você viu, garoto? A mulher
que me chamou de Clotilde, a que me chamou de irmã, nem olhou na minha cara.
Irmã ingrata.
- Parente é uma desgraça mesmo.
E desatamos a rir da
brincadeira.
- Não vá me arrumar confusão,
mamãe – preocupa-se Maria Regina – Aqui a senhora é estrangeira.
O professor percorre mesa por
mesa para cumprimentar amigos, autoridades, o prefeito, os graúdos da tradicional
família viçosense. Passa longe da gente.
- Que seboso. Vai se morder
quando entrarmos pra arrasar.
- Então, vamos inaugurar a
pista já.
Tocam “Smoke gets in your eyes” (J. Kern – Otto Harbach). Envolvo minha dama nos braços, sob os olhares curiosos
e saímos executando passos simples, sem muitos floreios, bailando pelos cantos
no sentido anti-horário, como se deve fazer. O velho professor, desafiado, decide
fazer o mesmo. Conduz a mulher do laquê até o meio do salão e muitos dos
presentes aplaudem. E saem na nossa cola, também realizando movimentos
delicados. Seus fiéis seguidores fazem o mesmo em apoio. A pista se enche. Tudo
muito tranquilo, tudo na paz, todos embalados por “Only you”(Buck Ram).
De repente, a orquestra do Zé
Boia parte para os ritmos mais acelerados: “I will wait for you” (Norman
Gimbel – M. Legrand) seguida de “Let’s twist again” (Mann – Apell). A galera se
agita.
- Oba! Agora nós vamos nos
espalhar – anima-se minha parceira.
E saímos no soltinho, jogando
as pernas para cima, abrindo espaço no salão, nos agitando, conquistando a
simpatia do também acelerado “Anão Trifásico”.
Um casal conhecido nosso se
aproxima sem que os víssemos: é o quieto João Batista com Toninha, a loura do
vasto buço. Já aboletada na nossa mesa, sentada ao lado de Ederson e Maria
Regina, a esfogueada Heleninha a mirar-me gulosa, a língua deslizando sobre o
lábio superior para provocar minha distração. Obtém sucesso, porque acabamos
trombando em outro casal. Qual era o casal? Justamente o professor e sua mulher
do laquê. Os dois balançam, balançam, mas não caem. Fazem cara de ódio, ignoram
nosso pedido de desculpas, recuperam a postura e, para nos desafiar, iniciam
giros e mais giros.
- Viu só? Ele tem força na
peruca. Deve estar colada.
- Credo. Parece um gambá morto
na cabeça.
- Velho metido. Vamos passar a
frente deles, garoto? Vamos?
- Vamos.
Obedeço. Nós os alcançamos
quase correndo e os ultrapassamos no estilo Fórmula Um. Damos mais umas duas ou
três voltas passando velozes por eles. E naquele entusiasmo, partimos para as
coreografias mais exageradas, chamativas. E giramos, giramos, giramos. A saia
dela se abrindo, sua gargalhada se espalhando pelo salão. O professor,
visivelmente incomodado conosco, retorna à sua mesa e, de lá, gesticula, parece
reclamar. Aplausos para nós ecoam de um canto, os músicos nos reverenciam e o
Anão Trifásico sinaliza um “ok” animado. Lourdes enrubesce.
- Estamos abusando. Vamos para
o pit stop?
Sigo para a mesa. Ela para o
toalete.
Mal me sento, Heleninha trata de
enfiar a mão naquele já conhecido bolso. E tem a grande decepção. Está devidamente
costurado. Maria Regina alerta:
- Beto. Contenha a mamãe. Já
estão reclamando de vocês.
- Jura? Que gente mais boba.
Minha parceira retorna rindo.
- Vocês não vão acreditar no
que acaba de acontecer comigo no banheiro. Uma mulher careca veio dizer que eu
estou bancando a ridícula. Hahahaha!
- E você respondeu o que?
- Nada. E eu vou dar atenção
pra gente invejosa? Sou um espetáculo, garoto.
“Datemi un martello” (Bardotti
– Hays – Seeger), sucesso da cantora Rita Pavone, nos incentiva nossa volta
espalhafatosa à pista.
Repetimos os movimentos de pião
só para a saia dela subir nas alturas. Ao nos ver fazendo aquilo seguidamente,
um casal tenta nos copiar, mas, na primeira tentativa de rodopio, a mulher
escorrega, ameaça cair, mas consegue se segurar no cavalheiro. Aquilo parece um
chamariz para desastres. Lourdes não segura o riso e os dois se zangam. Logo,
outro casal titubeia, perde o controle das pernas e... Tibum! Vão ao chão. Tento
conter as gargalhadas da minha partner, mas é impossível. O jeito é levá-la de
volta à mesa, para que se acalme. Quase chorando de tanto rir, ela se abana com
a barra da saia, exibindo a calçola preta de lycra que usa por debaixo. Aquilo
repercute mal.
- Fiquei até com calor – comenta
– Mas estou adorando.
- Mas a galera está esquisita,
mamãe. Lá vem uma – avisa Maria Regina.
É a tal calva do banheiro que
vem na nossa direção, incomodada com o gestual do levantar de saia. Paralisa
diante de nós como inspetora de internato e diz:
- Senhora! Tenha compostura.
Aqui é um ambiente familiar.
- Ora – rebate Lourdes, num
sorriso sonso – Estou só me divertindo.
- Está anarquizando com o nosso
baile. Uma senhora da sua idade devia se dar ao respeito. Age como uma
garotinha. Olhe-se no espelho.
- Você é que devia se olhar no
espelho. Não faz ideia do seu estado.
Maria Regina intervém no embate:
- Chega! Vamos embora, mamãe!
Não quero confusões.
- Puxa... Mas logo agora que
está ficando animado?
- Animado pra você, que logo volta
pro Rio. E nós? Como ficamos? Somos moradores daqui, esqueceu?
Deixamos o clube bem na hora em
que tocam “String of pearls” (Jerry Gray), para alegria dos incomodados e
tristeza da fogosa Heleninha, cheia de expectativas para comigo.
Nosso sábado foi só de passeios
e brincadeiras com o pequeno Rafael.
Domingo, dedicamos o dia das
mães às fotos pelo bosque ou pela rua com direito a presença do prateado rapaz “estátua
viva”. De almoço, cozido e a saborosa lasanha do cozinheiro Xexeca. Dois carros
de som passam o tempo: um avisando do show de Gleison Tulio no Bar Jarbinhas.
Outro, do baile no Cine Brasil. É para esse que vamos. Logo anoitece e vestimos
nossas roupas de dança. Lourdes, com suas invenções, retira da bolsa um rímel
de cabelo dourado e me obriga a passar aquilo. Saímos à rua, mechados e glamourosos,
porém, a pé.
No palco do Cine Brasil, uma
cantora engravatada canta música romântica, samba e forró, acompanhada por um
guitarrista e um tecladista. Aquele baile não tem o mesmo glamour do Parque das
Águas, mas está bastante animado, muita gente jovem. Antes de irmos para a
pista, alguém nos chama. É o “Anão Trifásico”. Aperta nossas mãos com euforia.
- Que legal encontrar vocês
aqui. São danados, hein? A dupla mais agitada que apareceu naquele clube.
Lourdes revela o apelido que criou
para ele. Ele morre de rir. Diz chamar-se Josué e reforça a piada:
- Sou mesmo pequenininho, mas
com alta voltagem danada. E aí? Vocês vão duelar com o professor João de novo?
- O professor?
- Sim. Olha ele ali.
De fato, na beira direita do
palco está o ilustre cidadão com sua trupe já nos olhando de cara feia. Situação
desagradável que se criou. Fico matutando uma ideia para acabar com aquele
clima.
- Chega de papo. Vamos dançar.
Pego Lourdes e saímos bailando,
sem dizer nada para ela. O salão está apinhado de gente, muitos casais se
espremem, se esbarram. Vou desguiando de todos seguindo um destino certo. Finalmente,
alcanço o professor e sua dama do laquê. Toco no ombro dele:
- Vamos trocar os pares? – sugiro.
Ele não gosta nada daquilo, mas
é obrigado a ceder. Faz parte da coisa. Lourdes abre um sorrisão e vai toda
derretida para os braços dele. Minha nova dama, muito desconcertada, quase
suplica:
- Olha... Não faça nada daqueles
passos que vi vocês fazendo. Não sei.
- Não se preocupe. Ficaremos no
básico. O importante é sermos felizes.
Eu a conduzo pelo salão sem
ousar nada, mas atento à minha amiga que, com seu jeito gaiato de ser, fala
sabe-se lá o que no ouvido do peruquento. Logo, já estão rindo, se entrosando.
Vem um breve intervalo e a cantora engravatada avisa que, naquela noite, haverá
a canga do Gleison Tulio. Nós nos
juntamos todos para conversar e o professor João está irreconhecível, afável,
sorridente. Aperta minha mão e elogia-me como dançarino.
- Vou dançar muitas vezes com o
senhor, professor João.
- Ah é? Ficarei honrado – diz
galanteador.
- Sim. Venho morar em Viçosa.
Aqui é tranquilo. Pelo menos, não se morre de atropelamento.
- Isso é verdade. Ando à
vontade por aqui.
Nossas desculpas são aceitas, a
paz está selada e nos divertimos os quatro em mais uma hora de dança.
Porém, deixamos o Cine Brasil
sem ouvir o tal cantor Gleison Tulio.
Nosso retorno ao Rio se dá
através do carro-foguete do Ederson que, durante a viagem, avisa que precisa
revisar os freios. Pânico.
Mas eu vivi uma semana bem
divertida naquela cidade mineira.
Dias depois, Lourdes me liga:
- Você não sabe da maior. Sabe
o professor João? O “Espinhela Caída?
- Sim. O que tem ele?
- Morreu, garoto. Morreu
atropelado.
Apesar da má notícia, ela não
contém e solta sua estridente gargalhada.
Depois disso, Lourdes vendeu o
apartamento do Largo dos Leões e foi morar um tempo com o filho mais velho em
Salvador. De lá, mudou-se para um bom apartamento em Viçosa. Dezesseis anos se
passaram daquela viagem. Nenhum contato durante esse tempo. Até que, na semana retrasada,
bem no dia do meu aniversário, tive a grata surpresa de receber ligação dela.
Está de volta ao Rio, alugou apartamento em Botafogo. Contradisse seu antigo
discurso:
- Não dá, garoto. Cidade do
interior é tudo muito parado, nada acontecesse. Eu gosto é do agito do Rio de
Janeiro.
E avisou que vai se matricular
numa aula de dança e já marcou consulta numa clínica ortomolecular.
- Continuo ótima, igual. Magra,
gostosa, a mesma garotinha feliz.
Concluiu com sua inesquecível
gargalhada.
Marcamos um almoço na Cobal do
Humaitá. Em breve, mataremos a saudade e daremos muita risada quando
relembrarmos daquelas nossas estripulias.
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