Meus avozinhos imaginários Cyro e Vinícius
Eu
deveria falar sobre minha relação com Braguinha, pelos nossos laços familiares,
ou citar a pouca ou nenhuma proximidade com meu avô materno (o outro já havia
falecido quando eu nasci), mas a ausência daquelas figuras mais velhas me fizeram
colocar no pedestal do meu imaginário outros que, apesar do nenhum contato
físico, viraram os vovozinhos que eu não tive. Um deles foi Cyro Monteiro, que descobri na
casa da minha avó através do disco Bossaudade dele com a Elizeth Cardoso. Eu,
muito criança, me divertia com as brincadeiras dos dois cantando em pot-pourri,
ela chamando-o de Formigão, os dois fazendo troça da estatura do Caçulinha,
líder de um brilhante regional. Na casa da minha avó se ouvia muito Angela
Maria, Dalva de Oliveira e Roberto Carlos, mas eu só queria saber da voz
vibrante da Divina e do jeito maroto do Cyro, famoso por cantar batendo na
caixinha de fósforo. Anos depois, esse disco veio morar comigo e foi uma
alegria descobrir que havia um segundo volume gravado com mais pot-pourris e
brincadeiras. Ela dizendo que o negócio dele agora era sopa e que seu edredom
estava refrigerado. Ele implicando com a peruca ruiva dela, que ela dizia
combinar com sua pele cor de jambo.
-
Nunca vi jambo preto, diz Cyro na gravação.
E
mais troças com o Caçulinha.
Mas
o tempo em que se comia Mandiopã passara.
De
vez em quando, assisto ao vídeo onde o Cyro, de roupa safári (muito em moda na
época), olhinhos apertados, sorridente, caixinha de fósforo na mão, é
entrevistado por Elke Maravilha, Sergio Cabral, Hermínio Bello e Carminha
Mascarenhas. Um dos artistas mais adorados que se tem notícia. Conheci
histórias ótimas dele, as feijoadas promovidas por sua mulher, as idas com
Chico Buarque ao Fla X Flu no Maracanã.
O
outro avozinho foi o Vinícius de Moraes. Soube que, quando o Cyro morreu, ele
chorou muito. Vinícius habitou minha adolescência com suas músicas e seus
versos se tornaram minhas palavras. Eu lia tudo o que ele escrevia. Adorava seu
jeito de falar, adotei a mania dos diminutivos. Decorei muita poesia e me
exibia declamando o “Operário em construção”. Não conseguia ver Vinícius como
um senhorzinho igual a tantos, mas como um garoto bagunceiro, outras vezes como
um rapaz, homem sedutor, cercado de mulheres, “bon vivant”, gozador, sempre bem
humorado, um amante extremo da vida.
Era
assim que eu queria ser.
Com
minha família, fiz uma viagem de carro através do sul até a Argentina. Em Punta
Del Leste, durante uma caminhada, nos deparamos com o letreiro de um cassino
anunciando o show da noite: Vinícius de Moraes, Toquinho e Maria Creuza.
Ficamos orgulhosos e quase indiferentes aos que passavam e riam de nossas
roupas. Estávamos todos usando macacão, outra roupa que era moda por aqui. Por
conta disso, fomos impedidos de entrar naquele estabelecimento.
Anos
depois, quando vieram notícias de que Vinícius estaria muito doente, bateu a
aflição pela possibilidade de sua morte, algo inadmissível. Não poderia morrer.
Vinícius era muita vida.
Eu
com minha irmã e nossos amigos, os irmãos Flavio e Bia, corremos e compramos os
ingressos para o show do Canecão.
Ficamos
bem ali no gargarejo em total êxtase. Casa lotada. Maior expectativa.
Finalmente
as luzes diminuíram, a orquestra atacou e as cortinas foram se abrindo e
revelando.
E
lá estava ele de roupa safári, bem na nossa frente, cercado por Tom, Toquinho,
Miúcha e um coro familiar de moças cantando “Estamos Aí” (Tom – Vinícius –
Chico – Aloli).
O
show foi só de pontos altos. Tom e Toquinho esbanjando virtuosismo, Vinícius falando
de sua parceria com Toquinho e dizendo “O dia da criação”.
Lembro-me
bem do Canecão em silêncio, todos hipnotizados quando ele declamou “Pátria
Minha”. Depois, em dupla com Tom, relembraram casos curiosos e de como surgiu a
“Garota de Ipanema”. De vez em quando, uma mocinha entrava em cena para levar
uns drinques. Ela passou a ser alvo das brincadeiras, dos gracejos do “Poetinha”,
bem instalado dentro de uma redoma. Bastava ela apontar na beira do palco e a
plateia vinha abaixo, certa do que viria a seguir. Num dado momento, ele saiu
de cena para Tom e Miúcha cantarem. Depois, ele retornou dançando ao som de “Poeta,
meu poeta camarada...” (Samba pra Vinícius de Toquinho e Chico).
Uma
noite inesquecível. Ele ali pertinho da gente sendo consagrado.
Nesse
2013 em que se comemoram os centenários de Cyro e Vinícius, ganhei outro dia dos
amigos Murilo e Angela várias caixas de Mandiopã e, inevitavelmente, me vieram
as lembranças dos meus tempos de moleque, onde eu também cheguei a usar roupa
safári e macacão. Eu me lembrei de tanta coisa...
Lembrei-me
do Cyro cantando na casa da minha avó e revi uma apresentação da Elizeth no
salão do Tijuca. Sem o Cyro. Ele se fora. Tempo longínquo.
Também
me lembrei da comoção geral com o anúncio da morte do “Poetinha”, país em luto.
Mas
ainda é viva a recordação do sentimento que tomava conta de mim na saída do
Canecão, completamente extasiado, uma felicidade plena com o que vi e ouvi.
Naquela
noite, tive a certeza. Vinícius, meu avozinho imaginário, não morreria.
Vinícius
é o que todo mundo já sabe. Vinícius é eterno.
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