A besta-fera

Meu amigo Luciano estava radiante com a novidade: seu pai mandara construir uma piscina no quintal e eu fui até lá para conhecer. Era uma ensolarada manhã de sábado e somente eu e ele ficamos um bom tempo naquela boa vida, entre um mergulho e outro, com Argos, um dog alemão enorme e boboca, a nos rodear, ávido por uma brincadeira. Jogávamos amêndoas e ele disparava feliz. Logo, vinha latindo querendo mais. Na varanda, indiferente ao que fazíamos, a tia do Luciano fazia gestos estranhos, ia de um lado para outro falando sozinha, paralisava, olhava para o além e gritava:
- Parem!
Tia Diva se dizia atriz de teatro e exercitava, naquele momento, sua capacidade de improvisação. Figura bastante curiosa, engraçadíssima, colecionadora de caretas, os cabelos arroxeados, esquelética, feia toda a vida, branca igual cera. Em certos momentos, sumia para dentro da casa e voltava com uma de suas muitas perucas coloridas na cabeça, colares no pescoço e plumas. E ficava de lá para cá falando sozinha, interpretando. O sobrinho, debochado que só, pediu:
- Tia. Mostra pro Beto a cena de suspense que a senhora faz.
Ela então se concentrou e fechou os olhos. Depois os abriu arregalados, como se fossemos assassinos prestes a atacá-la, esticou os braços para frente e gritou:
- Parem!
Luciano caindo na gargalhada e eu me segurando. E ele:
- Muito bom! Faz de novo, tia. Mas tem que ter mais pavor.
Orgulhosa de si, sem se dar conta do deboche, repetia tudo de novo, caprichando nos exageros. E no fim, gritava:
- Parem!
Coitada. Maluquinha de tudo. Só perdeu a concentração ao ouvir um “tchbummm”.
Luciano acabava de jogar Argos dentro da piscina.
- Não faça isso, menino! Se seu pai sabe do cachorro dentro da piscina nova...
Minha irmã veio me chamar. Amigos dos meus pais acabavam de chegar ao nosso sítio para passarem o final de semana.
Já em casa, meu pai foi logo recomendando:
- Quero que vocês se enturmem com os filhos dos meus amigos. São boas amizades.
Era um rapaz e uma garota. Marcelo e Joana. Regulávamos na idade.
Nossa casa no sítio é ampla, aconchegante, quatro quartos, varandão, piscina, gramado, churrasqueira... Tratei de mostrar a eles tudo e os convidei para um banho de piscina. Retraídos, não quiseram. Preferiram o banco do jardim a nos olhar.
- Vocês não gostam de piscina? – perguntei de dentro da água.
- Nós preferimos tomar banho de lago – respondeu Joana.
- Lago?
- É. Na fazenda do nosso avô tem um lago – confirmou Marcelo.
E eu fazendo a social:
- Aqui perto tem um. Querem conhecer?
- Sim.
Deixamos a casa, descemos a estrada e chegamos até onde eu queria.
Os dois irmãos olharam o lago com desprezo. Apontei para os patos e gansos que nadavam ali.
- O lago da fazenda do nosso avô é bem maior, bem mais bonito. E tem muito mais bichos. Meu avô tem muitos bichos.
- Que legal – disse desapontado.
- Aqui tem cavalo?
- Até um tempo atrás, tinha sim. Hoje em dia...
- Ah... Na fazenda do nosso avô tem um montão de cavalos. Tem gado, tem galinhas. Vejo que aqui não tem nada disso. Que pena.
Pegamos o caminho de volta para casa.
- Vocês aqui não tem floresta, não é?
- Bom... Temos esta mata que sobe o morro e...
- Na fazenda do nosso avô tem uma imensa e com todo tipo de bicho.
- Tem macaco?
- Tem.
- Aqui também. Na fazenda do seu avô tem gambá? Tem morcego? Aqui tem.
- Claro que isso tudo tem. Por acaso, neste lugar, tem cobra?
- Muita. Volta e meia, aparece uma pelo caminho. Vocês dois, fiquem de olho.
Meu instinto perverso começou a dar sinais, porque eu já começava a me irritar com aqueles dois enjoadinhos.
- Isso pra nós é bobagem – disse Marcelo – Não temos medo de cobra.
- Sim – confirmou Joana – Eu mesma já matei duas.
- É mesmo? E vocês não tem medo?
- Não temos medo de nada. Já somos acostumados com a fazenda do nosso avô. Quer ver uma coisa que vocês não têm aqui? Onça.
- Onça? É... Aqui não tem mesmo. Mas tem gente que se enfurece e vira uma onça.
- Às vezes, as onças atacam o galinheiro do nosso avô. Mas nós não temos medo.
- Mas tem coisas aqui que aposto que não existem na fazenda dele.
- Duvido. O que?
- A Mãe do Ouro que mora lá no alto do morro.
- Que bobagem é essa? – riu a garota.
- E também tem uma besta-fera que ronda por aí. Vamos precisar ter cuidado quando sairmos hoje a noite.
Os dois gargalharam da troça que eu fazia com eles.
- E existe besta-fera?
- Existe. É uma mula preta que solta fogo pela boca e ataca os distraídos no escuro.
- Pois que venha a besta-fera – desafiou o rapaz – Não temos medo de nada.
À noite teve festa na sede do clube. Fomos todos para lá. Enquanto nossos pais se divertiam no salão, ficamos na varanda. Luciano apareceu e eu o apresentei aos meus hóspedes chatinhos. E mais comparações:
- A sede da fazenda do nosso avô é gigante e muito bonita. Aqui é meio pobre.
- Aposto que as festas do seu avô são as melhores.
- Sim. Estamos achando essa daí muito sem graça.
Resolvi deixar aqueles dois de lado para curtir a folia do salão. Mas combinei com Luciano de pregarmos uma peça naquelas duas malas sem alça.
Nossos pais foram embora cedo com a promessa de que não demoraríamos. Esperei um tempo, voltei para a varanda e avisei aos dois arrogantes que já podíamos voltar para casa. E Luciano:
- Tomem cuidado. A besta-fera está solta por aí.
Os dois irmãos se entreolharam sorrindo.
- Tá bom – respondeu Joana, com cinismo – Estamos nos pelando de medo.
Meu amigo avisou que iria correndo para casa. E assim o fez. A partir do lago, disparou pela rua principal. Seguimos por outro caminho, um de pouca luminosidade. Eu caminhando atrás deles. Iniciei minha armação:
- Ouviram isso?
- Não. O que?
- Um barulho – disse, impondo um tom amedrontado na voz – Vem do mato.
- Não estou ouvindo nada.
- Nem eu – falou a garota - Pare de palhaçada. Você só está querendo nos assustar.
Caminhamos mais um pouco, dobramos uma esquina e iniciamos uma subida, eu diminuindo o passo, me distanciando cada vez mais deles.
Pelas imediações da casa do Luciano, estanquei e voltei a carga:
- Não acredito que vocês não estejam ouvindo. Alguém está nos seguindo.
- Pois que nos siga – proclamou Marcelo corajoso – Não temos medo de nada.
- Mas eu tenho. Vão vocês. Eu vou esperar aqui. Talvez volte pra sede.
Os dois me desprezaram e continuaram caminhando sempre em frente. Esperei dar boa distância. Percebi a sombra do meu amigo por entre as árvores e sinalizei.
E escutei a voz dele gritando, numa repetição da fala teatral da tia:
- Parem! Parem!
Os dois irmãos ouviram aquilo, se viraram para trás e me avistaram bem lá ao longe, mas também uma sombra de quatro patas surgir de dentro das matas vindo na direção deles. Ficaram ainda um tempo parados para conferir. Quando o tal vulto passou sob a luz de um poste, se certificaram que era mesmo um bicho negro, enorme, com coisas esquisitas no pescoço brilhando, penas e uma crina vermelha muito comprida de cachos balançando.
Não tiveram dúvidas. Era a besta-fera. E correram o mais que puderam, gritaram como doidos, adentraram nossa casa chorando muito.
Aquela família partiu no dia seguinte bem cedo. Nunca mais os vimos.
Eles nunca souberam que a besta-fera, na verdade, era Argos, o dog alemão que Luciano enfeitara com plumas, colares e a peruca da Tia Diva.

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