Milla e Milu



Uma tênue luminosidade vai entrando pelas frestas que dão acesso ao quarto. Quero dormir um pouco mais, mas sei que será impossível. Desde criança levanto cedo, mas, de uns anos para cá, se quisesse alterar esse hábito, seria impossível por dois motivos.
O primeiro deles se chama Milla. Sei que está a me observar da sua cama, instalada na quina da parede em frente. Tento enganá-la, me fingindo de adormecido. Ela desconfia. Sai de onde está para se aproximar da minha cabeceira, atenta a qualquer movimento meu. Em menos de um minuto, já está sobre a cama e, quase por cima de mim, gruda seu focinho no meu rosto. Prevendo que levarei uma lambida na boca, sou obrigado a desviar. Ela se anima e eu me rendo. E a beijo e a abraço. Em seguida, ela se ajeita ao meu lado e vira a barriguinha pra cima pedindo meus carinhos. Corro os dedos de cima para baixo. Ela fecha os olhos, ajeita seu corpo peludo bem grudado ao meu, pousa sua cabeça no meu braço para tirar um último soninho. A ideia de dormir um pouco mais é excelente.
Mas, logo vem o segundo motivo para o meu despertar: a gatinha Milu.
Como que adivinhando o que se passa, após noite de caçadas, vem também cobrar sua cota de carinho com seus miados exagerados. Milla rosna para ela, que é esperta, dribla a rival e passa por debaixo da cama para surgir pelo outro lado, com parada final sobre o meu peito. Cheira meu nariz e minha boca. Eu, sem deixar de afagar a ciumenta ao meu lado, com a outra mão coço o pescocinho, as orelhas e a nuca daquela felina manhosa, que, rapidamente satisfeita, desce para o outro lado e começa a esgadanhar minha colcha, pedindo para ser coberta. Eu obedeço. Ela adora essa brincadeira. Começo a apertar aquele montinho, que se debate, agarrando e mordendo minha mão bem protegida pelo tecido. Seus dentes e suas unhas são como agulhas. A brincadeira é rápida. Ela dá uns curtos espirros e se desfaz daqueles panos para armar um bote sobre algo que vê se mexendo. É seu rabinho que ainda está coberto. Leva um tempo se concentrando. E salta.
Olho para o relógio. São seis horas da manhã. Não tem jeito. Com essas duas se agitando, é o fim do meu repouso e, se me demoro a sair da cama, a gatinha implicante dá umas bocadas nos meus pés.
“Vamos levantar?”, pergunto.
Imediatamente, Milla olha para a porta que dá acesso à varanda e dá seu gritinho de excitação. Eu me levanto para abrir. A claridade vai invadindo de vez o quarto e as duas correm juntas para o telhado. Uma latindo e a outra ao seu lado a observar, como quem tenta entender a razão para aquela insanidade.
Todo o dia é a mesma coisa.
Desço as escadas e as duas vêm correndo, como se disputassem um rali. É a hora do desjejum. Na cozinha, o pote de ração da gatinha sempre fica no alto, sobre a mesa de madeira, para evitar que a outra coma ou derrame sua comida, o que não quer dizer que a recíproca não seja verdadeira. Milu já andou ciscando no pote da irmã, em momentos de distração. Ela para diante da mesa e arma a posição de salto. A outra quase cola nela, esperando. No que Milu salta, Milla lhe dá uma pequena investida acompanhada de um gritinho. E voltam-se, cada uma, para seus potes. Cada qual tem sua vasilha de água, posicionadas lado a lado, e próximas de suas comidas, mas, tanto uma, quanto a outra, sempre vão beber nas que estão opostas. Essas provocações são diárias.
Vou abrindo toda a casa. Tomo meu café da manhã, um copo de achocolatado com um sanduíche de queijo e presunto na chapa, uma atração para a galera presente e vou cuidar do jardim. Ali, alfinetes, trepadeiras, lágrimas de Cristo, caliandras e as heras crescem desmedidamente. Precisam dos meus cuidados diários. A cada planta que mexo, Milu vai acompanhando e dá uma dentadinha aqui e ali nas folhas. Enfim se afasta, e vai estapear o Chiquinho, um pequeno macaco de pelúcia que vive dependurado num trapézio, próximo aos degraus da escada. Depois, sai para explorar os telhados da vizinhança. Algumas vezes, para minha preocupação, ela dá umas desaparecidas. Mas ela sempre retorna para casa.
Milla já tem sua atenção voltada para a rua, para os que passam. E late. Late para o padeiro de bicicleta com sua buzina. Late para o caminhão de lixo, late para a vizinha mal-encarada que entra com um cachorro shar-pei marrom.
Ligo a televisão para ouvir o telejornal, enquanto podo os galhos. Uma hora mais tarde, com as plantas devidamente aguadas, eu me preparo para sair. Vou fechando toda a casa. Milu se ajeita no sofá sonolenta.
Milla aguarda. Já adivinha o que acontecerá.
Eu confirmo:
“Vamos passear?”
Seu rabinho dispara de alegria e eu lhe ponho a coleira peitoral com a guia de cor vermelha. Ela, pretinha com aquilo, parece uma flamenguista alegre rumando para a praia, me puxando e fazendo muito barulho de tanta euforia. Também late se eu espirro ou pigarreio. Eu a provoco fazendo um rum-rum, só para vê-la latir. Coisa de maluco.
Na praia ela se espalha. Corre direto para a água, se molha toda e sai se sacudindo para tornar a se molhar. Lembro do seu primeiro contato com o mar. Ela era bem pequenina. Foi em Ipanema. Tempo feio. Ressaca. Mal tocou as patinhas na areia, disparou enlouquecida na direção daquelas ondas enormes, sem se dar conta do perigo. E tomou um caixote. Tremeu de susto. Naquele mesmo dia, ela se esfregou pela primeira vez num peixe morto, para meu desespero. Fez isso algumas vezes depois. Até em esterco. Dizem que o cocker é um cão de caça e faz isso para camuflar seu cheiro. Já passei esses dissabores, assim como alguns outros sustos. Uma vez, ela quase se afogou em Ibicuí, porque cismou com uma garrafa pet que boiava amarrada a uma pedra. Logo depois, abocanhou uma água-viva. Chorou muito, com a boquinha ardendo. Passei gelo. De outra vez, em Saquarema, quase nos afogamos. Ela viu um bambu sendo levado pela correnteza forte e se atirou naquelas águas para pegar. Eu fui atrás para resgatá-la, que já afundava sem querer largar o tal bambu. Rosnou para mim. Conseguimos nos safar, graças a um banco de areia. Juntou gente para ver.
Milla teve também seu dia de heroína durante um passeio de barco em Arraial do Cabo. Parados diante da linda praia da ilha do farol, minha amiga Ada mergulhou, mas começou a se afogar, por causa da câimbra. O comandante do barco, imediatamente, jogou-lhe uma boia e Milla se atirou na água, mordeu a alça e veio rebocando minha amiga.
Milla adora o mar, adora uma praia e, diariamente, tem aquele prazer. Corre atrás de pedaços de pau, rasga cocos, cava a areia, cata conchas e nada muito. Nada até cansar.
No nosso retorno para casa, caminha exausta atrás de mim, com o focinho quase tocando nas minhas pernas. A hora do banho é dramática. Adora água, adora pular para morder os jatos que esguicham do chuveiro, mas detesta ser ensaboada e esfregada. Enxugar então é um estresse. Não gosta que mexa em suas patas. Rosna muito. Logo em seguida, para distraí-la e evitar que se esfregue úmida no sofá, eu lhe dou um palitinho mastigável de presente que lanço no meio do pátio. Ela corre atrás, para e fica diante dele me olhando e rosnando, querendo que eu vá tomá-lo dela. Em segundos, não há mais palitinho. Ela volta pedindo mais. Dou mais um e tudo se repete.
Chega a hora do meu almoço. As duas estão ali me observando, de olho grande no que estou comendo. Termino de lavar louça e as encontro em sono profundo. Às vezes, me surpreendo vendo-as dormindo juntas. Agora posso sair sozinho. Eu me arrumo e vejo que me observam conformadas. Durante a minha ausência, o silêncio é profundo. Milla não late. Emudece, se deprime, não come. Se o telefone toca e ela ouve minha voz na gravação da secretária eletrônica, uiva.
Milla é muito dependente. Uma constante preocupação. De vez em quando fica com o corpinho empolado pelas alergias e logo vem a otite. Problema genético. Não foi castrada e nunca cruzou. De sete em sete meses vem o cio e começa aquela enjoeira dela cutucando meu braço com o focinho pedindo para lhe passar a mão, enquanto salpica o chão de vermelho. Milu, ao contrário dela, não tem problema algum e fez a cirurgia de castração quando era recém nascida. Ambas não conheceram o sexo.
No meu retorno da rua, meto a chave na porta, mas já sei o que me espera. Milla já está com o ossinho na boca e pula, grita, pede carinho. Milu dá algumas passadas até o meio da sala e tomba de barriguinha para cima esperando. Se eu não for lá, ela permanecerá naquela posição. Uma graça.
Com as visitas a situação é quase parecida e a fidelidade chega a ser zero, dependendo da pessoa.
Outro dia, um amigo veio me ver e ficou encantado com a Milla. Ele sentou-se numa bergère que tenho na sala e ela logo veio cutucar-lhe insistentemente com o focinho. Não era um pedido de carinho. Na verdade, queria que saísse dali. Era o sofá onde ela sempre gostou de ficar para ver televisão. Cada uma delas tem suas manias. Milu também escolhe os lugares certos de ficar. De vez em quando, se apossa da cama da irmã e fica lá por horas, sem encontrar resistência. A outra é uma conformada.
Minhas queridas companheiras.
Tão adoráveis. Tão apaixonadas. Um amor incondicional. Durante um ano e meio em que morei direto nesta casa em Saquarema, elas me livraram de uma baita depressão. Deram-me alegria. Fizeram-me dependente delas.
Se preciso me ausentar de casa, vou, mas fico ansioso por voltar, com o pensamento sempre nessas minhas pequenas criaturas. E quando chego, é a mesma festa, a incontrolável alegria.
Anoitece. Preparo um lanche e me sento para ver televisão. As duas se instalam, obviamente, em cima de mim, bastante interessadas no que estou comendo.
Chego a ficar torto no sofá.
As horas passam e, quando vai batendo um sono, eu aviso:
“Vamos mimir?”
Imediatamente, Milla sobe as escadas. Sempre é a primeira a subir. Milu, malandra que é, trata de escapar para o jardim. Está acesa, ávida por caçadas, que quase sempre resultam em cadáveres de lagartixas. Uma vez, foi uma rolinha.
Uma dificuldade impor regras para gatinha tão arteira. Vou para a varanda e fico chamando por ela, que corre daqui para lá e de lá para cá, me provocando. Finalmente, atravessa a porta principal em disparada e eu fecho a casa.
Logo o dia amanhecerá e tudo começará do mesmo jeito.
Uma nota que não queria dar:
Milla me deixou para sempre no dia 25 de abril de 2011. Foi viver no paraíso dos bichinhos. Minha casa ficou bastante vazia. Milu tem vagado pelo corredor e pela sala durante a madrugada miando muito. Mas o tempo passa rápido e ela logo se acostumará com a ausência da irmã. Por enquanto, estamos morrendo de saudade dela.

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