Recordando Simone I


Numa ensolarada tarde em Ipanema, eu e João Alexandre seguimos pelo calçadão rumo ao apartamento vazio, onde ele morou por alguns anos com sua mãe, minha querida amiga Simone. Ele pediu-me que o acompanhasse, porque ainda não se sentia emocionalmente seguro para estar lá sozinho e organizar as caixas, as roupas e objetos a serem doados para uma instituição de caridade.
Olhando um ônibus repleto de turistas, contei a ele o passeio que eu e sua mãe fizemos uma vez, num tipo de transporte que circulou por um tempo pela orla chamado de “jardineira”, todo envidraçado, cujo percurso era Urca – São Conrado.

Mal embarcamos na jardineira e eu passei a representar o papel de marido possessivo, ciumento. Eu a repreendi em voz alta, chamando-a de mulher gastadeira, trambiqueira, maloqueira e que me obrigava a fazer passeios caros como aquele.
Os passageiros se distraíram com nosso teatro.
Simone pouco respondia. Corada, só fazia rir.
Depois, me fazendo de mais calmo, provoquei uma cantoria que acabou contagiando a todos.
Resultado: desembarcamos na estação do bondinho do Pão de Açúcar, todos se cumprimentando, tapinhas nas costas e desejos de felicidades ao som de “Carinhoso”. A alegria reinou naquele final de tarde.
Eu e Simone nos divertíamos com pouco ou nenhum dinheiro. Metidos pelas galerias, troçavamos dos vendedores das lojas e brechós, nossos preferidos. Num deles, ela se encantou com um vestido de noiva de longa cauda. Com a permissão da vendedora, eu a fiz vesti-lo. Descobri um fraque, coloquei uma cartola na cabeça fomos daquele jeito para a calçada, para um breve desfile. Juntou gente para ver.
Em um tempo bicudo, ela, em situação financeira complicada, propus que fabricássemos uns biscoitinhos amanteigados para vender. Simone tinha boa mão para a culinária e fazia saborosos pães e bolos, apesar do pouco ou nenhum cuidado quanto ao acabamento dos mesmos. E assim, decidimos levar a idéia adiante e transformamos a pequena cozinha do seu apartamento em nosso louco laboratório de experimentações. Foi uma empreitada. Eu sugeria sabores e formatos diversos. Ela concordava com tudo. Inventamos tantas misturas (amanteigados com gergelim, com amêndoas, com conhaque, com chocolate, com doce de leite, com passas ao rum...) que nos atrapalhamos na hora de identificar cada porção de biscoito. Montados os saquinhos e devidamente arrumados numa grande cesta de vime, saímos pela feira hippie de Ipanema utilizando a seguinte estratégia de vendas: para cada um adquirido, o cliente teria o direito de pedir uma das canções relacionadas em um cardápio musical exótico e variado com um pouco de cada coisa: MPB, tango, samba, rock, forró... E eu me esforçava nas imitações mais esquisitas. Ia de Gal, Clementina, Bethânia, Adoniran, Caetano, Cauby, Tetê Espíndola, Agnaldo Timóteo e até Dalva.
Não foi um sucesso de vendas, mas o saldo não poderia ser melhor: conseguimos três lojas interessadas nos tais biscoitos.
Anteriormente, havíamos experimentado um fracasso. Simone ganhara de uma amiga quatro telhas com gravuras decalcadas envelhecidas. Como recusar tal regalo? Ela me ligou pedindo conselhos. Não sabia o que fazer com aquilo.
Fui até o seu apartamento para conferir.
Realmente eram de um tremendo mau gosto...
Propus que tentássemos vender aquelas coisas na feirinha do calçadão de Copacabana.
Ela ficou receosa, disse não ter coragem de se expor, mas acabou aceitando.
Abrimos uma toalha xadrez, dessas de piquenique, diante de um hotel e espalhamos as ditas cujas nela. Uma tarde inteira ficamos ali. As pessoas passavam, olhavam nossa mercadoria com desprezo e seguiam retas. Quase escurecendo, eis que vem uma senhora com sua filha pela mão. Pararam diante das telhas e a mulher se admirou:
“Que coisa linda! Adorei! Quanto custa?”
“Cinquenta o par”, respondi.
“Ah... Eu vou levar pra botar na minha sala.”
Eu e Simone nos animamos.
Mas a garotinha repreendeu imediatamente.
“Não acredito! Você vai ter coragem de comprar essas porcarias?”
“Mas... filha...”
Olhamos com ódio para aquela criança dos infernos. Ela insistiu em nos desafiar.
“Se a senhora comprar esse lixo, não falo mais com a senhora.”
“Filha... São bonitos...”
“Vamos embora, mãe! Que mau gosto! Isso é lixo! Coisa de gente porca!”
A mulher se desculpou pela falta de modos da capetinha e foram embora.
Arrasados, ainda com ódio mortal da menina, catamos aquela tranqueira toda e despejamos tudo na primeira lixeira que encontramos.

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